Uma pergunta foi feita no título da última aula do curso Direito das Criptomoedas: quem controla o dinheiro, a sociedade ou o Estado?
Muita gente hoje responderia com uma terceira alternativa: os bancos! Mas nem sempre foi assim.
O atual poder dos bancos só começou a se formar por volta do século XVI, com o desenvolvimento mais estruturado do comércio internacional.
Grande parte dos negócios realizados nas feiras internacionais dos séculos XVI e XVII eram feitos com uso de títulos de crédito, que podiam ser considerados como uma espécie de dinheiro particular. “Vem daí – da criação de um sistema privado de pagamentos – a invenção do banco moderno” (MARTIN, 2016, pos. 1785)1.
Ao escrever sobre a Feira Internacional de Lyon, por exemplo, De Rubys (1604, p. 499)2 relata que não era incomum ver pagamentos de um milhão de libras sem que nenhum dinheiro fosse trocado.
O novo sistema bancário tinha como principal função financiar e liquidar pagamentos, de certa forma substituindo o papel do Estado em prover o terceiro elemento do dinheiro – a possibilidade de o credor inicial transferir a obrigação do devedor a um terceiro, como acerto de uma dívida sem relação com a original.
Esse sistema transformava, por meio do endosso, promessas de pagamento bilaterais em obrigações líquidas e negociáveis, funcionando especialmente bem para o comércio internacional.
Nas negociações entre Estados, o sistema de câmbio por letras, baseado na confiança e sem precisar ser cunhado em metais preciosos, tornou-se um “dinheiro particular supranacional interagindo com as moedas públicas locais” (BOYER-XAMBEU; DELEPLACE; GILLARD, 1994, p. 91-94)3.
Como resultado, os mercadores deixavam de depender do dinheiro oficial, retirando poder das mãos dos governantes.
A união entre Bancos e Estados
Percebendo a força do novo sistema bancário, diversos governantes começaram a unir forças com os banqueiros.
A autoridade política do soberano foi unida ao conhecimento comercial dos banqueiros, tornando o dinheiro do banco digno de crédito e universalmente transferível.
Em 1668, o Banco de Estocolmo (Riksbank) foi absorvido pelo estado sueco e se tornou o “primeiro banco estatal do mundo moderno” (DE SOTO, 2012, p. 121)4.
Pensadores começaram a analisar como conectar a moeda nacional, o novo sistema bancário e o poder político dos governantes.
Neste aspecto, destaca-se o clássico Do espírito das leis, de Montesquieu (1748), que evidenciou como o novo sistema financeiro poderia servir como instrumento para combater o absolutismo e fortalecer o constitucionalismo.
A sociedade monetária transformou-se no freio mais eficaz já inventado contra a loucura do despotismo (STEUART, 1966, p. 477)5.
No início dessa nova fase do constitucionalismo, em 1695, foi fundado o Banco da Inglaterra (oficialmente chamado Governor and Company of the Bank of England, cuja sigla é BoE), considerado o primeiro Banco Central da era moderna, embora tenha sido originalmente criado como uma instituição privada.
O acordo entre governo e banqueiros envolvia uma troca de favores cuidadosamente calibrada.
Os banqueiros particulares conquistaram a liquidez para seus títulos. A autoridade da Coroa, ao contrário da deles, se impunha sobre o país inteiro, e o dinheiro sob sua bênção gozaria de curso universal.
Em troca, os banqueiros entravam com o tino financeiro e a reputação na City que reforçavam o crédito da Coroa.
Em termos atuais, a Coroa dava garantia à liquidez do banco, enquanto o banco dava garantia ao crédito do soberano. (MARTIN, 2016, pos. 4211).
O recém-fundado Banco da Inglaterra logo se deparou com a questão de qual deveria ser o padrão da nova moeda público-privada. Mas a história da adoção do padrão-ouro fica para a nossa próxima aula. Até lá!
Notas
- MARTIN, Felix. Dinheiro: uma biografia não autorizada. Kindle edition. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2016.
- DE RUBYS, Claude. Histoire véritable de la ville de Lyon. Lyon, 1604. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=Cqw0AAAAQAAJ&printsec=frontcover&output=reader&hl=pt_BR&pg=GBS.PA499. Acesso em: 10 maio 2017.
- BOYER-XAMBEU, Marie-Thérèse; DELEPLACE, Ghislain; GILLARD, Lucien. Private Money and Public Currencies. Londres: M. E. Sharpe, 1994.
- DE SOTO, Jesús Huerta. Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2012.
- STEUART, James. Inquiry into the Principles of Political Economy. Edimburgo e Londres: Scottish Economic Society por Oliver & Boyd, 1966 [1767]. 1 v.