A atuação do Poder Público na internet: diretrizes legais e descumprimento contumaz

Atuação do Poder Público na Internet

A presença e a influência da internet na sociedade cresce exponencialmente. Com isso, surgem novos desafios e responsabilidades, especialmente no que diz respeito à atuação do Poder Público na internet para a garantia de um ambiente digital seguro, justo e que respeite os direitos dos cidadãos.

O Marco Civil da Internet, lei fundamental que regula o uso da internet no Brasil, estabelece diretrizes claras para a atuação do Estado nesse cenário. 

Os arts. 24 a 28 da Lei 12.965/2014 delineiam as responsabilidades e competências do Poder Público em diferentes aspectos da vida online, desde a adoção de padrões abertos até o combate à promoção da internet como ferramenta social.

Neste artigo, vamos explorar detalhadamente como a legislação brasileira aborda a atuação do Poder Público na internet, destacando os principais pontos do Capítulo IV do Marco Civil da Internet, incluindo:

Iniciemos pelo estudo das diretrizes para atuação do Poder Público na internet.

As 10 diretrizes da atuação do Poder Público na internet

O art. 24 do Marco Civil da Internet lista 10 diretrizes para a atuação do Poder Público na internet, com o objetivo de desenvolver a rede no Brasil. 

Tais diretrizes são válidas para União, Estados, Distrito Federal e Municípios, incluindo os três Poderes e a administração direta e indireta.

Vamos ver cada uma delas.

1. Governança Multiparticipativa

A primeira diretriz para a atuação do Poder Público na internet visa a estabelecer mecanismos de governança que envolvam diversos setores da sociedade, como governo, empresas, sociedade civil e academia.

O inciso dispõe que o “estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica”.

A ideia é garantir uma gestão transparente, colaborativa e democrática da internet, na qual diferentes atores tenham voz e participação nas decisões relacionadas ao desenvolvimento e uso da rede.

2. Racionalização da Gestão da Internet 

Aqui, o foco está na promoção de uma gestão eficiente e racional da internet, incluindo a participação do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

O dispositivo diz o seguinte: “promoção da racionalização da gestão, expansão e uso da internet, com participação do Comitê Gestor da Internet no Brasil”.

O CGI.br é um órgão colegiado, multissetorial e sem fins lucrativos responsável pela coordenação e integração dos serviços relacionados à internet no Brasil. Ele foi criado em 1995 e sua atuação é fundamental para o desenvolvimento e a governança da internet no país.

3. Interoperabilidade Tecnológica nos Serviços de Governo 

O terceiro inciso dispõe a “promoção da racionalização e da interoperabilidade tecnológica dos serviços de governo eletrônico, entre os diferentes Poderes e âmbitos da Federação, para permitir o intercâmbio de informações e a celeridade de procedimentos”.

Essa diretriz busca garantir que os serviços eletrônicos oferecidos pelo governo sejam interoperáveis, ou seja, que possam se comunicar e funcionar de forma integrada entre os diferentes órgãos e esferas de governo. 

Isso visa facilitar o intercâmbio de informações e agilizar os procedimentos para os cidadãos.

Aqui temos um desafio gigantesco, tendo em vista a existência de 27 unidades da federação e mais de 5 mil municípios que, em tese, deveriam usar sistemas que conversam entre si.

4. Interoperabilidade entre Sistemas e Terminais Diversos 

Similar à diretriz anterior, esta visa garantir que os sistemas e terminais usados na internet sejam compatíveis entre si, permitindo uma comunicação fluida e eficiente independentemente do dispositivo ou plataforma utilizada.

A íntegra da diretriz é a seguinte: “promoção da interoperabilidade entre sistemas e terminais diversos, inclusive entre os diferentes âmbitos federativos e diversos setores da sociedade”.

5. Adoção de Tecnologias Abertas e Livres

Aqui, a preferência é dada para o uso de tecnologias, padrões e formatos abertos e livres, o que promoveria a transparência, a inovação e a colaboração no desenvolvimento de soluções digitais, além de evitar dependências excessivas de fornecedores específicos.

Esta diretriz é cotidianamente desrespeitada. Praticamente todo o serviço público utiliza tecnologias proprietárias, com despesas para o licenciamento dos respectivos softwares. 

6. Publicidade e Disseminação de Dados Públicos

A sexta diretriz visa a garantir que dados e informações públicas sejam disponibilizados de forma aberta e estruturada, facilitando o acesso e uso por parte dos cidadãos, empresas e pesquisadores, contribuindo para a transparência e a prestação de contas do governo.

7. Otimização da Infraestrutura das Redes

Esta diretriz fala na “otimização da infraestrutura das redes e estímulo à implantação de centros de armazenamento, gerenciamento e disseminação de dados no País, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a difusão das aplicações de internet, sem prejuízo à abertura, à neutralidade e à natureza participativa”.

O objetivo é promover a melhoria da infraestrutura das redes, incentivando a implantação de centros de armazenamento, gerenciamento e disseminação de dados no Brasil. 

Isso contribui para uma melhor atuação do Poder Público na internet, elevando a qualidade técnica das redes, a inovação e a ampliação das aplicações disponíveis, respeitando os princípios de abertura, neutralidade e participação.

8. Capacitação para o Uso da Internet 

A atuação do Poder Público na internet deve promover o desenvolvimento de ações e programas de capacitação para uso da rede,

O objetivo é fazer com que as pessoas possam utilizar a internet de forma eficaz, segura e produtiva, promovendo a inclusão digital e o desenvolvimento de habilidades digitais na sociedade.

9. Promoção da Cultura e da Cidadania 

A nona diretriz fala na promoção da cultura e da cidadania. Isso significa incentivar ações que promovam a cultura digital, a educação para o uso responsável da internet e o exercício da cidadania online, contribuindo para a formação de uma sociedade mais consciente e participativa.

10. Prestação de Serviços Públicos Integrados e Eficientes

Por fim, a última diretriz destaca a importância de oferecer serviços públicos de atendimento ao cidadão de forma integrada, eficiente, simplificada e por múltiplos canais de acesso, para garantir um serviço público acessível e de qualidade para todos os brasileiros.

A íntegra diz o seguinte: “prestação de serviços públicos de atendimento ao cidadão de forma integrada, eficiente, simplificada e por múltiplos canais de acesso, inclusive remotos”.

Um exemplo é a plataforma gov.br, que centraliza serviços em diferentes áreas, como o CadÚnico, a Receita Federal, o FGTS, a Previdência Social etc. Trata-se de um sistema que agiliza a vida do cidadão e permite o acesso mais rápido a serviços públicos em diversas áreas, na linha do que prevê a última diretriz da atuação do Poder Público na internet.

A atuação do Poder Público na Internet no desenvolvimento de aplicações

O caso do gov.br mostra como, por vezes, a atuação do Poder Público na internet envolve o desenvolvimento de aplicações, tanto para o público em geral quanto para servidores públicos e outros órgãos públicos.

Quando isso acontece, o art. 25 do Marco Civil dispõe que as aplicações de internet de entes do poder público devem buscar cinco objetivos:

  • Compatibilidade dos serviços de governo eletrônico com diversos terminais, sistemas operacionais e aplicativos para seu acesso
  • Acessibilidade a todos os interessados, independentemente de suas capacidades físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais, mentais, culturais e sociais, resguardados os aspectos de sigilo e restrições administrativas e legais
  • Compatibilidade tanto com a leitura humana quanto com o tratamento automatizado das informações
  • Facilidade de uso dos serviços de governo eletrônico
  • Fortalecimento da participação social nas políticas públicas

Os objetivos estão em linha com as diretrizes vistas anteriormente. Destacam-se as previsões de acessibilidade das aplicações (considerando que quase um quarto da população brasileira possui algum tipo de necessidade especial) e de leitura por máquinas das informações das aplicações.

A atuação do Poder Público na internet para para o uso seguro, consciente e responsável da rede

A internet pode ser um ambiente perigoso. A quantidade de golpes, fraudes e outros tipos de ilícitos já faz com que em alguns lugares a quantidade de crimes cibernéticos seja até mesmo superior a de crimes tradicionais.

Pensando nisso, o Marco Civil da Internet pensou na educação como principal arma para a promoção de um ambiente digital seguro. Diz o art. 26:

“O cumprimento do dever constitucional do Estado na prestação da educação, em todos os níveis de ensino, inclui a capacitação, integrada a outras práticas educacionais, para o uso seguro, consciente e responsável da internet como ferramenta para o exercício da cidadania, a promoção da cultura e o desenvolvimento tecnológico”.

Assim, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ao aplicarem prestarem os serviços educacionais no âmbito de suas respectivas competências, devem incluir no programa o ensino de práticas para um melhor uso da internet.

Isso envolve desde conhecimentos básicos sobre o funcionamento da rede até técnicas de Educação Midiática, que ensinem como consumir de forma crítica os conteúdos publicados em portais e redes sociais.

Liberalidade no controle parental

Apesar do que está disposto no art. 26 sobre o uso da educação para um ambiente digital mais seguro, o Marco Civil da Internet não dispôs sobre maiores restrições ao uso da internet por crianças e adolescentes.

Os pais, por exemplo, não estão obrigados a adotar medidas extras de segurança, além do que já está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

O art. 29 do Marco Civil dispõe que o usuário tem a opção de livre escolha na utilização do controle parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus filhos menores.

O mesmo artigo dispõe que cabe ao poder público, em conjunto com os provedores de conexão e de aplicações de internet e a sociedade civil, promover a educação e fornecer informações sobre o uso dos programas de controle parental, bem como para a definição de boas práticas para a inclusão digital de crianças e adolescentes.

As iniciativas públicas de fomento à cultura digital e de promoção da internet como ferramenta social

O papel da internet como ferramenta de participação social já está mais do que consolidado. Com as iniciativas de governo eletrônico, o acesso à internet tornou-se tão essencial quanto outros serviços de interesse público, como o fornecimento de água e energia.

Por isso, a atuação do Poder Público na internet deve fomentar o uso da rede como uma ferramenta social.

O art. 27 do Marco Civil da internet dispõe que tais iniciativas públicas devem:

  • Promover a inclusão digital
  • Buscar reduzir as desigualdades, sobretudo entre as diferentes regiões do País, no acesso às tecnologias da informação e comunicação e no seu uso
  • Fomentar a produção e circulação de conteúdo nacional

Em relação ao segundo ponto, vale mencionar a crítica que muitos especialistas fazem sobre a liberação da prática de Zero Rating no Brasil, o que criaria uma internet dual, ou uma “internet de ricos” e uma “internet de pobres”.

Internet de ricos e Internet de pobres: uma crítica à atuação do Poder Público na internet ao interpretar o Zero Rating

Enquanto o inciso II do art. 27 do Marco Civil dispõe que a atuação do Poder Público na internet deve buscar a redução das desigualdades, a prática do Zero Rating acaba por criar uma criticada internet dual.

Na “internet de ricos”, o acesso é universal, pois nela o usuário consegue arcar com os custos para ter uma internet com um pacote de dados móvel que chega até o fim do mês, além de ter acesso a uma residência com internet fixa e computador.

Já na “internet de pobres”, o acesso basicamente é feito pelo celular e, com a prática do Zero Rating, assim que o pacote de dados acaba (antes do fim do mês, geralmente), o acesso fica restrito a alguns aplicativos de mensagem e a algumas redes sociais selecionadas pelo plano da operadora.

Nós já tratamos do Zero Rating (Taxa Zero) no artigo sobre neutralidade de rede, mas basicamente se trata da prática de as operadoras de telefonia móvel fornecerem acesso ilimitado a alguns aplicativos mesmo após o fim do pacote de dados contratado.

A prática do Zero Rating foi banida da Europa em 2022, por ferir o princípio da neutralidade de rede, mas foi considerada legal no Brasil, ao menos do ponto de vista da concorrência econômica.

A atuação do Poder Público na internet no planejamento estratégico estatal

O art. 28 do Marco Civil da Internet dispõe que o Estado deve, periodicamente, formular e fomentar estudos, bem como fixar metas, estratégias, planos e cronogramas, referentes ao uso e desenvolvimento da internet no País.

Aqui surge a dúvida se “o Estado” refere-se a todos os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), como previsto no art. 24, ou se a referência é apenas à União, visto que o planejamento estratégico seria voltado para o uso e desenvolvimento da internet “no País”.

Em âmbito nacional, já existe a Estratégia Nacional de Governo Digital, um conjunto de recomendações estratégicas que tem por objetivo articular e direcionar as iniciativas de governo digital entre todos os entes federados, de modo a ampliar e simplificar o acesso do cidadão aos serviços públicos.

A estratégia está prevista na Lei 14.129/2021, que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital.

Observe-se, no entanto, que a previsão do art. 28 do Marco Civil é mais ampla, prevendo a fixação de metas, estratégias, planos e cronogramas, referentes ao uso e desenvolvimento da internet como um todo, e não apenas de iniciativas de governo digital.

Conclusão: a atuação do Poder Público na internet, segundo o Marco Civil

Neste artigo, vimos que a atuação do Poder Público na internet deve se pautar pela observância de diretrizes que ajudem a promover uma rede mais transparente, segura e participativa.

Vale ressaltar que o Decreto 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet, dispõe que os órgãos e as entidades da administração pública federal com competências específicas (Anatel, Secretaria Nacional do Consumidor, Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência) atuarão de forma colaborativa, consideradas as diretrizes do CGI.br, e deverão zelar pelo cumprimento da legislação brasileira, inclusive quanto à aplicação das sanções cabíveis, mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior.

Por fim, lembramos que mesmo o Marco Civil sendo uma lei majoritariamente principiológica, o descumprimento contumaz de alguns dos dispositivos do Capítulo IV por parte do Poder Público não deveria ocorrer de forma tão escancarada quanto acontece cotidianamente.

Por isso, cabe aos órgãos de controle e a sociedade civil cobrar para que a atuação do Poder Público na internet esteja em melhor consonância com o que está previsto na lei.

Foto por Matheus Natan

Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade