Marco Civil da Internet – tudo o que você precisa saber sobre a lei fundamental da Internet

Marco Civil da Internet

Marco Civil da Internet é o nome pelo qual ficou conhecida a Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.

O Marco Civil da Internet muitas vezes é definido como a Constituição da Internet no Brasil, por ser uma lei principiológica que define as regras gerais para a regulamentação da rede.

Neste artigo, veremos em detalhes os aspectos mais relevantes do Marco Civil da Internet, incluindo:

Vamos começar entendendo o que é o Marco Civil da Internet.

O que é o Marco Civil da Internet?

Marco Civil da Internet é o nome pelo qual ficou popularmente conhecida a Lei 12.965/2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.

Chama-se “civil” por ter sido criado em reação a um projeto de lei penal que buscava criminalizar práticas cometidas por meio da internet, como a cópia de filmes e músicas.

Trata-se de uma lei principiológica, com anteprojeto elaborado de forma colaborativa, e que tem como grandes eixos:


O Marco Civil da Internet é considerada uma lei pioneira tanto na sua formulação quanto em relação a alguns temas abordados.

Conhecida por alguns como Constituição da Internet, a lei é regulamentada pelo Decreto 8.771, de 11 de maio de 2016.

Qual a função do Marco Civil da Internet?

Como a própria ementa da Lei 12.965/2014 deixa claro, a função do Marco Civil da Internet é estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.

A função do Marco Civil da Internet, portanto, não é estabelecer regras para controlar minuciosamente tudo o que fazemos na internet. Ao contrário, a lei se preocupa logo no início em estabelecer os fundamentos que disciplinam o uso da internet no Brasil.

O principal fundamento é o respeito à liberdade de expressão (o que não inclui o direito a fazer discursos de ódio). Ele permeia todos os artigos da lei e muitas vezes é usado como (falso) escudo por aqueles que teimam em usar a rede para propagar fake news e desinformações de todos os tipos.

Além do respeito à liberdade de expressão, os demais fundamentos que disciplinam o uso da internet no Brasil são:

O objetivo de todos esses fundamentos é promover o direito de acesso à internet a todos os brasileiros, garantindo acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos.

Também é função do Marco Civil da Internet promover a inovação e o fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso à internet; e a adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados.

A Lei 12.965/2014 achou por bem separar esses fundamentos dos princípios do Marco Civil da Internet.

Quais são os princípios do Marco Civil da Internet?

Como dissemos, o Marco Civil da Internet é basicamente uma lei principiológica.

Os oito princípios do Marco Civil da Internet são:

1. Garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento

Reforçando o respeito à liberdade de expressão que já havia sido apresentado como principal fundamento para disciplinar o uso da rede no Brasil.

2. Proteção da privacidade

Um dos temas mais importantes do Direito Digital. Como diz a própria lei mais adiante, a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet.

Quebras de privacidade só são possíveis por meio de ordem judicial, quando imprescindíveis para a elucidação de casos concretos.

Este princípio e o próximo vieram a ser mais bem detalhados quatro anos depois da publicação do Marco Civil com a edição da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

3. Proteção dos dados pessoais, na forma da lei

A citada lei foi editada quatro anos depois na forma da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, conhecida como LGPD.

O princípio da proteção de dados guia a guarda de registros de conexão e de acesso (logs) e temas relacionados.

4. Preservação e garantia da neutralidade de rede

O princípio da neutralidade de rede busca garantir que todas as informações que trafegam na internet devem ser tratadas da mesma forma, sem discriminar determinadas informações para servi-las com velocidades diferentes, por exemplo.

Este princípio impede a manipulação de velocidade de sites que poderiam pagar mais e assim tornar o acesso desigual. Em outras palavras, não importa se você é o Google ou um pequeno blog, a velocidade e qualidade de acesso a ambos deve ser a mesma.

5. Preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede

Considerando-se que milhões de pessoas trabalham, estudam e dependem da internet para fazer suas atividades cotidianas, manter a rede em pleno funcionamento é tão (ou mais) importante quanto a manutenção de outros elementos de infra-estrutura.

Este princípio exige ainda que a preservação da estabilidade da internet seja feita por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas.

6. Responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades

Este princípio deixa claro que o que se faz na internet possui consequências na vida real, no mundo jurídico, no meatspace 3.

A lei à qual o princípio se refere não é necessariamente uma lei específica para responsabilização de crimes na internet, mas sim lei em sentido amplo, incluindo os crimes definidos no Código Penal e em leis esparsas.

7. Preservação da natureza participativa da rede

Reforça-se o fundamento já analisado de que a internet não foi concebida como meio de comunicação de um para muitos, mas sim como uma rede em que cada nó tem a possibilidade de ser receptor e emissor.

8. Liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet

A desregulamentação que marcou os primeiros anos da internet abriu espaço para ideias de negócios inovadoras, criando algumas das empresas mais valiosas do mundo com modelos de negócios que antes da rede sequer existiam.

Este princípio é bem relacionado à Lei Complementar 182, de 1o de junho de 2021, que institui o Marco Legal das Startups e do empreendedorismo inovador.

O último princípio do Marco Civil da Internet busca de alguma forma manter esse espaço de liberdade, desde que não entre em conflito com os demais princípios dispostos na lei.

Como é notório, o legislador intencionalmente repetiu alguns dos fundamentos em forma de princípios.

A ideia foi a de reforçar os aspectos mais importantes do Marco Civil da Internet, a saber, a liberdade de expressão, a privacidade, o caráter participativo da rede e a ideia de que a internet não é terra sem lei.

A estrutura do Marco Civil da Internet

Uma boa forma de se entender o Marco Civil da Internet é observando como a Lei 12.965/2014 foi estruturada.

A estrutura das leis no Brasil é regrada pela Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998. Esta lei complementar dispõe que os artigos de uma lei podem ser agrupados em forma de subseções, seções, capítulos, títulos, livros e partes.

No caso do Marco Civil da Internet, o legislador optou por dividir os seus 32 artigos em cinco capítulos, da seguinte forma:

  • Capítulo I: Disposições Preliminares (arts. 1º a 6º)
  • Capítulo II: Dos direitos e garantias dos usuários (arts. 7º e 8º)
  • Capítulo III: Da provisão de conexão e de aplicações de internet
    • Seção I: Da neutralidade de rede (art. 9º)
    • Seção II: Da Proteção aos Registros, aos Dados Pessoais e às Comunicações Privadas (arts. 10 a 17)
      • Subseção I: Da Guarda de Registros de Conexão (art. 13)
      • Subseção II: Da Guarda de Registros de Acesso a Aplicações de Internet na Provisão de Conexão (art. 14)
      • Subseção III: Da Guarda de Registros de Acesso a Aplicações de Internet na Provisão de Aplicações (arts. 15 a 17)
    • Seção III: Da Responsabilidade por Danos Decorrentes de Conteúdo Gerado por Terceiros (arts. 18 a 21)
    • Seção IV: Da Requisição Judicial de Registros (arts. 22 e 23)
  • Capítulo IV: Da atuação do Poder Público (arts. 24 a 28)
  • Capítulo V: Disposições Finais (arts. 29 a 32)

O núcleo do Marco Civil da Internet encontra-se no Capítulo III, com os quatro grandes temas abordados pela lei:

Esses quatro grandes temas merecem artigos à parte, pois constituem os mais importantes temas atualmente estudados no Direito Digital.

Importante notar que, no primeiro capítulo, além dos objetivos, fundamentos e princípios já comentados, encontra-se também a conceituação jurídica de diversos termos bastante utilizados no Direito Digital (internet, terminal, endereço IP, administrador de sistema autônomo, conexão à internet, registro de conexão, aplicações de internet e registros de acesso a aplicações de internet).

Por que foi criado o Marco Civil da Internet?

Uma boa forma de entender uma lei é compreendendo as razões de a lei ter sido editada.

A ideia de uma lei que regule o uso da internet começou a surgir em vários países assim que a rede começou a ganhar usuários em escala exponencial.

Marcel Leonardi 4 ensina que três diferentes correntes doutrinárias surgiram ao longo do debate sobre a regulamentação da internet.

  1. Corrente da Autorregulação: forte nos primeiros anos de popularização da rede, defendia que a internet deveria ser um espaço livre e autorregulável e que os governos não teriam competência para legislar no “território” que seria o ciberespaço.
  2. Corrente do Direito do Ciberespaço: defendia a criação de um Direito do Ciberespaço, segregado do direito tradicional, que levaria em conta as características intrínsecas da internet, como a escala mundial, a aceleração exponencial de suas inovações e seus usos e costumes próprios. Essa ideia fazia mais sentido na época em que as pessoas “entravam na internet”, quando o “ciberespaço” e o mundo real pareciam de fato ser coisas bastante distintas, diferente do que ocorre atualmente.
  3. Corrente da Analogia: defendia que a internet não representa nada significativamente novo. Todas as leis já existentes no ordenamento jurídico poderiam, por analogia, ser aplicadas aos casos concretos ocorridos com intermediação da rede.

Ao final, prevaleceu uma quarta corrente, que traz uma abordagem mista. Um sistema jurídico aliado à arquitetura da internet, como faz o próprio Marco Civil da Internet no Brasil. Um longo caminho, contudo, foi percorrido até chegarmos a essa lei.

O debate sobre se e como a internet deveria ser regulada foi travado durante anos. Lawrence Lessig 5 identificou que quatro forças disputavam esse cabo de guerra regulatório da época:

  1. Governos com suas normas jurídicas
  2. Empresas com sua lógica econômica
  3. Constrições sociais
  4. Tecnologia, capaz de permitir ou proibir determinados comportamentos dependendo da forma como a rede e seus aplicativos eram programados

No Brasil, as correntes doutrinárias alternaram seus momentos até o surgimento do projeto de lei que caracterizava como crime informático ou virtual os ataques praticados por “hackers” e “crackers”, em especial as alterações de “home pages” e a utilização indevida de senhas.

O PL 84 havia sido apresentado em 1999 pelo Deputado Luiz Piauhylino, mas ganhou notoriedade com um substitutivo apresentado pelo Senador Eduardo Azeredo, o que o fez ficar conhecido como Lei Azeredo.

Entre outras disposições, o projeto previa penas de até quatro anos de prisão para quem destravasse um celular (“jailbreak”) ou para quem copiasse músicas de um CD para outros dispositivos. A Revista Carta Capital chegou a apelidar o projeto de “AI-5 Digital”.

Diante da perspectiva de que uma das primeiras leis brasileiras especificamente voltadas para regulamentação da internet fosse uma lei penal, setores da sociedade se organizaram e começaram a discutir o que viria a se tornar o Marco Civil da Internet.

Quem criou o Marco Civil da Internet?

O advogado Ronaldo Lemos publicou em 2007 um artigo na Folha de S. Paulo propondo que, em vez de uma lei penal como propunha o PL 84/1999, o Brasil deveria editar uma regulação civil. Nasce neste artigo o termo Marco Civil da Internet.

Começou, então, um processo colaborativo de elaboração de um anteprojeto de lei. Plataformas interativas, com apoio do Poder Executivo via Ministério da Justiça, foram disponibilizadas para que as pessoas físicas e jurídicas interessadas fizessem suas contribuições de forma organizada.

O próprio Ronaldo Lemos ficou responsável por organizar e sistematizar as mais de 800 colaborações enviadas em duas fases de consulta pública.

A intensa participação da sociedade civil organizada foi uma inovação para a época, consolidando mecanismos de participação popular que posteriormente viriam a ser institucionalizados pela Câmara dos Deputados (eDemocracia) e pelo Senado Federal (eCidadania).

Com o anteprojeto finalizado, a então Presidente Dilma Rousseff apresentou à Câmara o PL 2126/2011, depois apensado ao PL 5403/2001.

O projeto ficou tramitando na Câmara por três anos, até ser aprovado em 25 de março de 2014 para envio ao Senado, onde passou a tramitar como PLC 21/2014.

No Senado, a tramitação durou menos de um mês, sendo o projeto aprovado em 22 de abril de 2014. Um dia depois, a Presidente Dilma Rousseff sancionava e publicava o Marco Civil da Internet como Lei 12.965/2014. Eu já trabalhava no Senado nesta época e pude ver a velocidade com que o projeto foi aprovado, a tempo de ser sancionado durante a realização do evento NET Mundial em São Paulo.

Ronaldo Lemos e Carlos Affonso Souza 6 lembram que o contexto da época (Jornadas de Junho de 2013, revelações de Edward Snowden e Copa do Mundo no Brasil) influenciou bastante a reta final de tramitação do projeto de lei.

Além das manifestações de 2013, outro fator foi especialmente determinante para o encaminhamento do Marco Civil da Internet. Trata-se das revelações feitas por Edward Snowden sobre o desenvolvimento de programas governamentais de espionagem, e em especial voltados para o governo brasileiro. De forma surpreendente, o Marco Civil foi escolhido como parte da resposta nacional aos escândalos envolvendo o aumento indiscriminado de vigilância e espionagem.

Ronaldo Lemos e Carlos Affonso Souza (2016)

Assim, embora o anteprojeto tenha sido organizado por Ronaldo Lemos e o projeto tenha sido formalmente apresentado pela Presidente Dilma Rousseff, a resposta para a pergunta “Quem criou o Marco Civil da Internet?” não tem como resposta uma única pessoa.

Além dos Poderes Executivo e Legislativo, dezenas de especialistas e instituições colaboraram tanto na fase de elaboração do anteprojeto quanto na fase de tramitação do projeto de lei.

Por isso, o Marco Civil da Internet é apontado por muitos como grande exemplo de processo legislativo colaborativo organizado.

A Constitucionalidade do Marco Civil da Internet

Um processo legislativo que leva em consideração centenas de opiniões de diferentes pessoas não poderia ficar imune a críticas.

Ainda durante a tramitação do projeto de lei, surgiram questionamentos acerca da constitucionalidade de alguns artigos do Marco Civil da Internet.

Um dos pontos mais polêmicos são a irresponsabilidade dos provedores de conexão em relação a conteúdos gerados por terceiros e a responsabilidade relativa dos provedores de aplicações de internet em relação aos mesmos conteúdos (estes só são responsabilizados em caso de inação após ordem judicial específica, o que ficou conhecido como “judicial notice and take down”).

A discussão sobre a constitucionalidade de tais disposições chegou ao STF. Em um caso específico, uma pessoa que afirma nunca ter tido conta no Facebook tinha seu nome em um perfil falso usado para proferir ofensas na rede social.

A pessoa pedia que o Facebook fosse obrigado a excluir o perfil e pagar indenização por danos morais. A sentença determinou a exclusão do perfil, mas negou o pagamento da indenização, fundamentando-se no art. 19 do Marco Civil da Internet.

O autor recorreu e conseguiu o direito à indenização na turma recursal, fazendo com que o Facebook interpusesse o Recurso Extraordinário (RE) 1037396, discutindo a constitucionalidade do art. 19.

O tema foi reconhecido como de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, nos seguintes termos:

Tema 987 – Discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros (relator ministro Dias Toffoli, RE 1.037.396)

A ministra Ellen Gracie opina pela constitucionalidade do art. 19. Considera ela uma prevalência do princípio da liberdade de expressão sobre o direito relativo à privacidade, este analisado pelo Judiciário em caso concreto.

Para Ellen Gracie, o pagamento de indenizações antes mesmo de uma ordem judicial de retirada de conteúdo equivaleria a uma espécie de censura.

Os provedores de aplicações de internet, especialmente os de menor porte, na prática removeriam todos os conteúdos solicitados para evitar o pagamento contínuo de indenizações.

Conclusão: a importância do Marco Civil da Internet

Se cada área do Direito possui sua lei fundamental, o Marco Civil da Internet certamente é esta lei basilar para o chamado Direito Digital.

Ao definir princípios a serem seguidos no uso da internet, a Lei 12.965/2014 impacta tanto as novas leis quanto as futuras interpretações de leis existentes antes de sua edição.

Não por acaso, o Marco Civil da Internet influenciou a elaboração de leis semelhantes em outros países, como Itália, e a interpretação de leis locais, como na Argentina.

Assim, conhecer o Marco Civil da Internet é essencial tanto para o advogado que pretende atuar na área quanto para empresas que precisam adequar seus negócios online ao disposto na lei.

Notas

  1. BARLON, John Perry. A Declaration of the independence of Cyberspace (1996).
  2. SEARLS, Doc. WEINBERGER, David. World of Ends (2003)
  3. Meatspace e Cyberspace foram termos opostos criados pelo escritor William Gibson e popularizados no seu romance Neuromancer para se referir à vida real e à vida virtual, respectivamente.
  4. LEONARDI, Marcel. Fundamentos de direito digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
  5. LESSIG, Lawrence. The Law of Horse: what CyberLaw might teach (1999).
  6. SOUZA, Carlos Affonso. LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2016.
Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade