A possível inconstitucionalidade do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet proposto pelo PL das Fake News (Projeto de Lei 2.630/2020)

Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet

O presente artigo tem como objetivo discutir possíveis vícios de constitucionalidade do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, cuja criação foi proposta pelo Projeto de Lei 2.630, de 2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

Para tanto, serão analisados os seguintes tópicos:

Conhecido como “PL das Fake News”, o Projeto de Lei 2.630, de 2020, de autoria do Senador Alessandro Vieira, foi aprovado no Senado Federal em 30 de junho de 2020 na forma de um substitutivo apresentado pelo relator do projeto, Senador Angelo Coronel. 

O texto aprovado pelo Senado Federal e remetido à Câmara dos Deputados dispõe, em seu art. 25, sobre a criação de um conselho auxiliar do Congresso Nacional, cujas atribuições incluem a realização de estudos, pareceres e recomendações sobre liberdade, responsabilidade e transparência na internet.

Neste artigo, argumenta-se que a criação do referido órgão nos termos do texto aprovado pelo Senado Federal pode ser inconstitucional por invadir competências do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional previstas no art. 224 da Constituição Federal e por ferir o princípio da eficiência disposto no art. 37 da Carta Magna.

Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet e a possível invasão de competências constitucionais do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional

O texto do Projeto de Lei 2.630, de 2020, aprovado pelo Senado Federal, prevê em seu art. 25 a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet. Este Conselho seria o órgão responsável pelo acompanhamento das medidas de que trata a pretendida Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

A proposta é que o colegiado seja composto por 21 conselheiros aprovados pelo Congresso Nacional, com mandato de dois anos, admitida uma recondução.

Ocorre que a Constituição Federal dispõe, em seu art. 224, que, para os efeitos do disposto no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo V (Da Comunicação Social), da carta constitucional, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social (CCS), na forma da lei.

Três anos após a promulgação da Constituição de 1988, o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional foi instituído por meio da Lei 8.389, de 30 de dezembro de 1991.

O art. 2° desta lei dispõe que o CCS tem como atribuição a realização de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações que lhe forem encaminhadas pelo Congresso Nacional a respeito do Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo V (Da Comunicação Social), da Constituição Federal. Conforme a referida lei, o CCS é composto por 13 conselheiros titulares e 13 de suplentes, eleitos em sessão conjunta do Congresso Nacional, com mandato de dois anos, admitida uma recondução.

Com algumas interrupções, o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional vem funcionando desde 2002. A primeira eleição para o órgão ocorreu na sessão conjunta do Congresso Nacional de 5 de junho de 2002 e a sexta e mais recente eleição foi realizada na sessão conjunta do Congresso Nacional de 3 de março de 2020, conforme a Tabela 1.

ComposiçãoEleiçãoMandatoPresidenteVice-PresidenteProdução
1a05/06/20022002 a 2004José Paulo Cavalcanti FilhoJayme Sirotsky6 pareceres
3 estudos
1 recomendação
2a22/12/20042004 a 2006Arnaldo NiskierLuiz Flávio Borges d’Urso8 pareceres
6 estudos
3a17/07/20122012 a 2014Dom Orani João TempestaFernando César Mesquita18 pareceres
4a08/07/20152015 a 2017Miguel Ângelo CançadoRonaldo Lemos23 pareceres
1 estudo
2 recomendações
5a13/07/20172017 a 2019Murillo de AragãoMarcelo Cordeiro14 pareceres
1 estudo
1 recomendação
6a03/03/2020A iniciar
Tabela 1 – Composições do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional de 2002 a 2020. Fontes: Relatório de Gestão da 5a composição do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional e Diário do Congresso Nacional.

O CCS foi o modelo que inspirou a proposta de criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, que não constava do texto inicial do Projeto de Lei 2.630, de 2020, apresentado pelo Senador Alessandro Vieira.

A criação do órgão foi incluída pelo relator, Senador Angelo Coronel, a partir de emendas propostas pelos Senadores Rodrigo Cunha e Antonio Anastasia, já no primeiro relatório apresentado em 24 de junho de 2020. A inspiração do CCS está expressa no relatório do projeto de lei:

Importante introdução trazida nas discussões realizadas durante a elaboração deste relatório se referiu a instituição de um órgão que promova debates e acompanhamento sobre liberdade e transparência na internet. Pela pluralidade de forças políticas que já o compõem, o Congresso Nacional se revela como o ambiente mais apropriado para a instituição desse órgão. Dessa forma, estamos propondo a criação de um conselho consultivo, nos moldes do Conselho de Comunicação já existente, composto por representantes de entidades diversas, para manter permanente espaço de debates e acompanhamento do papel das redes sociais e a situação da liberdade de expressão nas redes.

Considerando-se que a Constituição Federal prevê que o CCS é o órgão auxiliar do Congresso Nacional para tratar de questões relacionadas à Comunicação Social, surge a dúvida se é constitucional a criação de um segundo órgão – o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet – para a realização das competências a ele atribuídas.

Estariam as matérias a serem analisadas pelo Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet relacionadas ao Título VIII, Capítulo V, da Constituição Federal? Em caso positivo, poderia um órgão não previsto na Constituição realizar atribuições de outro órgão nela previsto? A existência de dois conselhos auxiliares do Congresso Nacional com atribuições sobrepostas feriria o princípio da eficiência disposto no art. 37 da Constituição Federal?

Para esclarecer a dúvida acerca da constitucionalidade do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet é necessário primeiro definir se as competências a ele atribuídas relacionam-se com o disposto no Título VIII, Capítulo V, da Constituição Federal.

O referido capítulo constitucional sobre Comunicação Social é composto por apenas cinco artigos (arts. 220 a 224) que tratam sobre:

Além do já citado art. 224, nota-se que o dispositivo mais relevante para os objetivos deste trabalho é o art. 220, cuja íntegra é a seguinte:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.


§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

§ 3º Compete à lei federal:

I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade.

Por determinação constitucional expressa, o disposto no art. 220 da Constituição Federal é objeto das atribuições do CCS, que podem ser encontradas no art. 2º da Lei 8.389/1991:


Art. 2° O Conselho de Comunicação Social terá como atribuição a realização de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações que lhe forem encaminhadas pelo Congresso Nacional a respeito do Título VIII, Capítulo V, da Constituição Federal, em especial sobre:

a) liberdade de manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação;

b) propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias nos meios de comunicação social;

c) diversões e espetáculos públicos;

d) produção e programação das emissoras de rádio e televisão;

e) monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social;

f) finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas da programação das emissoras de rádio e televisão;

g) promoção da cultura nacional e regional, e estímulo à produção independente e à regionalização da produção cultural, artística e jornalística;

h) complementariedade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão;

i) defesa da pessoa e da família de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto na Constituição Federal;

j) propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens;

l) outorga e renovação de concessão, permissão e autorização de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;

m) legislação complementar quanto aos dispositivos constitucionais que se referem à comunicação social. (Grifos nossos).

As atribuições propostas para o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, por sua vez, estão dispostas no art. 25 do texto do Projeto de Lei 2.630, de 2020, aprovado pelo Senado Federal:

Art. 25. O Congresso Nacional instituirá, em até 60 (sessenta) dias contados da publicação desta Lei, em ato próprio, conselho que terá como atribuição a realização de estudos, pareceres e recomendações sobre liberdade, responsabilidade e transparência na internet.

Parágrafo único. O Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet é o órgão responsável pelo acompanhamento das medidas de que trata esta Lei, e a ele compete:

I – elaborar seu regimento interno, que, para entrar em vigor, deverá ser aprovado pela Mesa do Senado Federal;

II – elaborar código de conduta para redes sociais e serviços de mensageria privada, a ser avaliado e aprovado pelo Congresso Nacional, aplicável para a garantia dos princípios e objetivos estabelecidos nos arts. 3º e 4º desta Lei, dispondo sobre fenômenos relevantes no uso de plataformas por terceiros, incluindo, no mínimo, desinformação, discurso de incitação à violência, ataques à honra e intimidação vexatória;

III – avaliar os dados constantes nos relatórios de que trata o art. 13 desta Lei;

IV – publicar indicadores sobre o cumprimento dos códigos de conduta pelo setor;

V – avaliar a adequação das políticas de uso adotadas pelos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada;

VI – organizar, anualmente, conferência nacional sobre liberdade, responsabilidade e transparência na internet;

VII – realizar estudos para a criação de fundo para financiamento da educação digital no Brasil;

VIII – avaliar os procedimentos de moderação adotados pelos provedores de redes sociais, bem como sugerir diretrizes para sua implementação;

IX – promover estudos e debates para aprofundar o entendimento sobre desinformação, e o seu combate, no contexto da internet e das redes sociais;

X – certificar a entidade de autorregulação que atenda aos requisitos previstos nesta Lei; e

XI – estabelecer diretrizes e fornecer subsídios para a autorregulação e para as políticas de uso dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada. (Grifos nossos).

A leitura dos dispositivos acima reproduzidos deixa claro que se prevê para o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet atribuições mais especializadas, focadas sobretudo em provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada. 

Tal especialização não consta no rol de atribuições do CCS. A falta de previsão legal de conselheiros ligados a empresas e profissionais de Comunicação Social com atuação predominantemente na internet deve-se mais à época de promulgação da lei que instituiu o CCS em 1991, antes da chegada da internet comercial ao Brasil, do que a uma eventual dúvida sobre o enquadramento de veículos de internet como integrantes do segmento da Comunicação Social. 

Prova disso é que já foram apresentadas propostas de alteração na composição e nas atribuições do CCS para incluir competências e representantes de setores ligados à internet. 

Um exemplo é o Projeto de Resolução do Senado 55, de 2019, do Senador Humberto Costa, que cria a Instituição Independente de Acompanhamento das Mídias Sociais como órgão subordinado ao CCS. 

Outro exemplo é o Projeto de Lei do Senado 385, de 2017, do Senador Paulo Rocha, que propõe alterar a composição e o processo de escolha dos membros do CCS. Entre outras disposições, o PLS 385/2017 propõe a inclusão na composição do CCS de representantes de empresas e profissionais de telecomunicações e de um representante do Comitê Gestor da Internet no Brasil, com a seguinte justificativa:

A composição do CCS foi o objeto de discussão pelo próprio Conselho, pelo menos em suas últimas formações. Ficou evidente que novos atores do setor das comunicações precisam estar representados, principalmente em decorrência das mudanças tecnológicas das últimas décadas, com o crescimento da internet e os novos serviços encampados pelas empresas de telecomunicações. Justifica-se, portanto, que empresas e categorias profissionais das telecomunicações estejam representadas.

Em relação à internet, em razão de se caráter internacional e dos diversos atores nacionais envolvidos em sua dinâmica, entendemos que a melhor solução é a representação no CCS do Comitê Gestor da Internet no Brasil, órgão tripartite (governo, empresas e usuários), responsável por estabelecer as diretrizes e normas para o uso e desenvolvimento da internet no país.

Se a comunicação por meio da internet for classificada como Comunicação Social, então a competência para tratar de matérias relacionadas, por exemplo, à livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação deveria ser do CCS e não do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet. 

A razão para isso é a hierarquia das normas: a futura Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, como lei ordinária que pode vir a ser, não poderia contrariar o disposto no art. 224 da Constituição Federal, que estabelece que o órgão auxiliar do Congresso Nacional para tratar de matérias relacionadas à Comunicação Social é o CCS.

Resta, então, definir se a comunicação por meio da internet é ou não classificada como Comunicação Social. PEREIRA (2012) define Comunicação Social como

o estudo das causas, funcionamento e conseqüências da relação entre a sociedade e os meios de comunicação de massa – rádio, revista, jornal, televisão, teatro, cinema, propaganda, internet, dentre outros. Engloba os processos de informar, persuadir e entreter as pessoas. Encontra-se presente em praticamente todos os aspectos do mundo contemporâneo, evoluindo aceleradamente, registra e divulga história e influencia a rotina diária, as relações interpessoais no meio social e de trabalho.

De acordo com a definição, não resta dúvida de que meios de comunicação baseados na internet, como portais de conteúdo jornalístico, sites de notícias, podcasts jornalísticos e projetos similares são considerados veículos de comunicação social. 

A própria Constituição Federal equipara os chamados meios de comunicação social eletrônica às emissoras de rádio e televisão, como fica patente pelo § 3º adicionado ao art. 222 por meio da Emenda Constitucional nº 36, de 2002:

Art. 222 A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País.

(…) 

§ 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais.

O texto do Projeto de Lei 2.630, de 2020, aprovado pelo Senado Federal, contudo, direciona suas disposições não para meios de comunicação social eletrônica como portais de notícias ou blogs e podcasts jornalísticos, mas sim para dois tipos específicos de aplicações de comunicação na internet, redes sociais e serviços de mensageria privada, nos seguintes termos:

Art. 1º Esta Lei, denominada Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, estabelece normas, diretrizes e mecanismos de transparência para provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada a fim de garantir segurança e ampla liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento. 

(…)

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: 

(…)

VIII – rede social: aplicação de internet que se destina a realizar a conexão de usuários entre si, permitindo e tendo como centro da atividade a comunicação, o compartilhamento e a disseminação de conteúdo em um mesmo sistema de informação, através de contas conectadas ou acessíveis entre si de forma articulada; e

IX – serviço de mensageria privada: aplicação de internet que viabiliza o envio de mensagens para destinatários certos e determinados, inclusive protegidas por criptografia de ponta a ponta, a fim de que somente remetente e destinatário da mensagem tenham acesso ao seu conteúdo, excluídas aquelas prioritariamente destinadas a uso corporativo e os serviços de correio eletrônico.

Parágrafo único. Para os propósitos desta Lei, não serão considerados provedores de redes sociais na internet os provedores de conteúdo que constituam empresas jornalísticas, nos termos do art. 222 da Constituição Federal.

A comunicação realizada por meio de perfis particulares em redes sociais em que o indivíduo publica opiniões, fotografias e outros conteúdos pessoais não se encaixa no conceito de Comunicação Social. Tampouco se encaixa no conceito a comunicação de indivíduo para indivíduo, ou mesmo em grupos particulares, realizada por meio de serviços de mensageria privada.

O problema muda de figura quando se observam perfis em redes sociais que funcionam como veículos de comunicação de massa. É possível identificar diversos perfis em redes sociais que possuem alcance muito maior do que o alcance de meios de comunicação tradicionais, distribuindo conteúdos que não são de cunho particular. 

Hoje um único influenciador digital, com pouca ou nenhuma estrutura, é capaz de propagar uma mensagem para mais pessoas do que veículos de comunicação com estrutura profissional e dezenas de trabalhadores contratados ou mesmo do que provedores de conteúdo que constituam empresas jornalísticas nos termos do art. 222 da Constituição Federal.

No caso de serviços de mensageria privada, protegidos em regra por criptografia de ponta a ponta, é mais difícil identificar perfis que funcionem como veículos de comunicação em massa.

Ainda assim, há evidência do uso no Brasil de serviços de mensageria privada para a propagação em massa de certos tipos de mensagem, incluindo campanhas de desinformação, sobretudo em períodos eleitorais (MELLO, 2020). 

Tais campanhas de desinformação são conhecidas como fake news, entendidas como informações intencionalmente falsas que se fazem passar por notícias com o objetivo de enganar os receptores da mensagem (DELMAZO E VALENTE, 2018). Isso é diferente de classificar como fake news uma notícia que se deseja desacreditar. Sobre a diferenciação conceitual, SOUZA E PADRÃO (2017) lembram que 

fake news não é a notícia com a qual você não concorda ou desaprova! Essa tática de discurso tem sido muito usada por políticos para descredenciar matérias jornalísticas que são do seu desagrado. Trata-se de um uso distorcido da expressão e que mostra como o problema da proliferação de notícias sem compromisso com a verdade precisa ser combatido de maneira eficaz.

A disseminação em larga escala de campanhas de desinformação em redes sociais e serviços de mensageria privada foi o principal motivador da apresentação do Projeto de Lei 2.630, de 2020, que por isso ficou conhecido como “PL das Fake News”.

A relatoria do projeto no Senado foi designada, inclusive, ao mesmo parlamentar que preside a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News, criada pela aprovação do Requerimento do Congresso Nacional 11, de 2019. 

Não faltam evidências, portanto, que serviços de mensageria privada são capazes de promover comunicação em larga escala, adentrando no conceito de Comunicação Social. 

Uma prova de que o uso de redes sociais e serviços de mensageria privada como veículos de comunicação em massa é de fato tema relacionado à Comunicação Social é a quantidade de pareceres que o CCS já publicou sobre o tema. 

A mais recente composição do órgão, cujo mandato foi de 2017 a 2019, realizou um amplo seminário sobre Fake News e Democracia em dezembro de 2017 e publicou seis pareceres sobre projetos de lei que tratavam de comunicação na internet, conforme a Tabela 2. 

Número do parecerRelatoresEmenta
PCS 11/2019Conselheiro Sydney SanchesAnalisa o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 2.463/2019, que dispõe de divulgação de imagens e informações em veículos de mídia e redes sociais em situações de ataque massivo a pessoas.
PCS 10/2019Conselheiro Sydney SanchesAnalisa o Projeto 9.533/2018, que altera a Lei 7.170/1983, Lei de Segurança Nacional, para dispor sobre o incitamento através das redes sociais.
PCS 9/2019Conselheiro Sydney SanchesResponde consulta do Deputado Hugo Leal acerca da privacidade e atividade das plataformas digitais.
PCS 3/2019Conselheira Patrícia BlancoAnálise do PL 559/2019, que “Acrescenta parágrafo ao artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para dispor sobre a necessidade de inclusão, no currículo escolar do ensino fundamental e do ensino médio, de disciplina sobre a utilização ética das redes sociais – contra a divulgação a divulgação de notícias falsas (Fake News)” de autoria do Deputado Paulo Pimenta (PT/RS).
PCS 2/2018Conselheiro Sydney SanchesAnalisa os Projetos de Lei e iniciativas legislativas apensadas ao Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº. 5.130/2016, em especial as propostas relativas ao bloqueio de aplicações na internet previstas no Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 5.204, de 2016.
PCS 1/2018Conselheiros Miguel Matos, Murillo de Aragão, José Francisco de Araújo Lima, Ricardo Bulhões Pedreira, Maria José Braga e José Antonio de Jesus da Silva.Analisa projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre o tema das fake news.
Tabela 2 – Pareceres da 5a composição do CCS sobre projetos de lei que tratam de comunicação na internet. Fonte: Diário do Congresso Nacional.

A quantidade de pareceres sobre comunicação na internet corresponde a 42,8% do total de 14 pareceres produzidos durante o mandato da 5a composição do CCS de 2017 a 2019, evidenciando o peso do tema sobre as deliberações do órgão previsto na Constituição Federal para auxiliar o Congresso Nacional em matérias sobre Comunicação Social.

Sobreposição de competências e o princípio constitucional da eficiência

Caso o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet já estivesse em funcionamento no período do mandato da 5a composição do CCS, é possível que o Congresso Nacional tivesse simultaneamente dois órgãos auxiliares emitindo pareceres não necessariamente convergentes sobre as mesmas matérias legislativas. 

A sobreposição de competências pode significar uma afronta ao princípio da eficiência, consagrado no art. 37 da Constituição Federal a partir da redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998. DI PIETRO (20020) ensina que o princípio da eficiência

apresenta-se sob dois aspectos, podendo tanto ser considerado em relação à forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os melhores resultados, como também em relação ao modo racional de se organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, e também com o intuito de alcance de resultados na prestação do serviço público.

A existência de dois conselhos auxiliares analisando as mesmas matérias legislativas no Congresso Nacional não parece se adequar a um modo racional de se organizar, estruturar e disciplinar a administração pública. 

Além de pouco eficiente, a sobreposição de competências também aumenta o gasto público. Mesmo que os conselheiros não sejam diretamente remunerados pelo trabalho, ainda assim a administração pública tem custos como emissão de passagens aéreas, pagamento de diárias, designação de servidores públicos para dar suporte administrativo aos órgãos e fornecimento de estrutura física para as reuniões, por exemplo. 

A Tabela 3 apresenta as similaridades entre os dois conselhos:

NomeConselho de Comunicação Social do Congresso NacionalConselho de Transparência e Responsabilidade na Internet
Previsão constitucionalArt. 224 da Constituição FederalNão há
Base legalLei 8.389/1991Projeto de Lei 2.630/2020, aprovado no Senado Federal e remetido à Câmara dos Deputados
AtribuiçõesRealização de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações que lhe forem encaminhadas pelo Congresso Nacional a respeito do Título VIII, Capítulo V, da Constituição Federal.Realização de estudos, pareceres e recomendações sobre liberdade, responsabilidade e transparênciana internet.
Composição26 conselheiros (13 titulares e 13 suplentes)21 conselheiros
FormaçãoEleição pelo Congresso NacionalAprovação do Congresso Nacional
Mandato2 anos, admitida uma recondução2 anos, admitida uma recondução
DespesasOrçamento do Senado FederalOrçamento do Senado Federal
Tabela 3 – Similaridades entre o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional e o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet. Fontes: Lei 8.389/1991 e texto do Projeto de Lei 2.630/2020 aprovado no Senado Federal em 30 de junho de 2020.

Apesar das similaridades, os dois Conselhos teriam algumas atribuições específicas.

O CCS seria o único competente para analisar matérias relacionadas à Comunicação Social que não envolvessem a redes sociais e serviços de mensageria privada.

Já o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet seria o único competente para elaborar e fiscalizar códigos de conduta para redes sociais e serviços de mensageria privada.

Para não haver afronta ao Princípio da Eficiência, duas soluções se apresentam.

A primeira solução parte do princípio que o mais eficiente seria mesmo manter dois órgãos auxiliares, cada um com uma especialidade.

Neste caso, seria necessário eliminar a sobreposição de competências, esclarecendo qual conselho teria a prerrogativa de analisar matérias legislativas que tratem de comunicação social e internet.

Assim, cada conselho teria atribuições específicas a partir de critérios objetivos para a distribuição das matérias. A dificuldade seria estabelecer e aplicar tais critérios na prática.

A segunda solução seria incorporar ao já existente Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional as competências que o Projeto de Lei 2.630, de 2020, pretende atribuir ao Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet. 

Para isso, a Câmara dos Deputados teria que alterar o texto aprovado no Senado Federal, incluindo modificações na Lei 8.389, de 30 de dezembro de 1991, a fim de dar uma nova composição e novas competências ao Conselho de Comunicação Social.

As modificações teriam ainda que ser confirmadas em nova votação no Senado Federal, nos termos do art. 65, parágrafo único, da Constituição Federal.

Conclusão: seria o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet inconstitucional?

A incorporação pelo CCS das competências previstas para o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet solucionaria não apenas a considerada afronta ao princípio constitucional da eficiência como também resolveria a possível inconstitucionalidade de se atribuir a outro Conselho que não aquele previsto no art. 224 da Constituição Federal a tarefa de auxiliar o Congresso Nacional em matérias sobre Comunicação Social.

Vale dizer que a possível inconstitucionalidade do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet não foi detectada pelo controle preventivo de constitucionalidade realizado pelo Senado Federal durante o processo legislativo. 

Importante notar, contudo, que, por conta da pandemia do coronavírus que alterou o funcionamento normal do Senado Federal em 2020, suspendendo a realização das reuniões das comissões permanentes, o Projeto de Lei 2.630, de 2020, não passou pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal. 

Conforme o art. 101 do Regimento Interno do Senado Federal, a CCJ é o órgão responsável pelo controle preventivo de constitucionalidade no Senado Federal.

A audiência da CCJ durante a tramitação no Senado do Projeto de Lei 2.630, de 2020, chegou a ser requerida pelos Senadores Esperidião Amin e Eduardo Girão, por meio do Requerimento do Senado Federal 1.115, de 2020. O Requerimento não foi aprovado.

Assim, o controle preventivo de constitucionalidade no Senado ocorreu apenas por meio do relatório do Senador Angelo Coronel, aprovado em Plenário.

Os pontos levantados neste artigo, assim como outras questões de constitucionalidade do projeto, ainda podem ser alvos de controle preventivo durante a tramitação da matéria na Câmara dos Deputados.

Caso o projeto seja aprovado pela Câmara dos Deputados sem alterações e sancionado pela Presidência da República sem vetos, apenas o Supremo Tribunal Federal, provocado por uma ação direta de inconstitucionalidade, poderia confirmar ou descartar os argumentos apresentados neste artigo.

Artigo abaixo apresentado em 10 de dezembro de 2020 na pós-graduação em Direito Digital da UERJ/ITS Rio como trabalho de conclusão do módulo de Direito Digital e Inovação no Setor Público, ministrado no segundo semestre de 2020. Trata-se de artigo meramente acadêmico, sem qualquer relação com o trabalho realizado junto ao Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional.

Referências

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BRASIL. Diário do Congresso Nacional, Ano LXXV, Número 6. Brasília, 5 de março de 2020. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/103264>. Acesso em: 3 dez. 2020.

BRASIL. Lei 8.389, de 30 de dezembro de 1991. Institui o Conselho de Comunicação Social, na forma do art. 224 da Constituição Federal e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8389.htm>. Acesso em: 7 nov. 2020.

BRASIL. Resolução do Senado Federal 93, de 1970. Dá nova redação ao Regimento Interno do Senado Federal. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/norma/563958/publicacao/16433779>. Acesso em: 2 dez. 2020.

BRASIL. Congresso Nacional. Requerimento do Congresso Nacional 11, de 2019. Criação de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, composta de 15 (quinze) Senadores e 15 (quinze) deputados, e igual número de suplentes, para, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, investigar os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público; a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições 2018; a prática de cyberbullying sobre os usuários mais vulneráveis da rede de computadores, bem como sobre agentes públicos; e o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137594>. Acesso em: 2 dez. 2020.

BRASIL. Senado Federal. Ato do Presidente do Senado Federal 2, de 2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/presidencia/ato-coronavirus-2>. Acesso em: 3 dez. 2020.

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Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade