Criptomoedas como instrumento para o liberalismo econômico

Bitcoin e Liberalismo Econômico

Na aula anterior do curso Direito das Criptomoedas, vimos o que é o liberalismo econômico e como os ideais que nortearam a criação das moedas virtuais se encaixam perfeitamente a vários princípios liberais.

Nenhum dos economistas clássicos do liberalismo viveu o suficiente para testemunhar a criação e o desenvolvimento das criptomoedas.

Graças a essa tecnologia, o ideal liberal de uma moeda livre da interferência do Estado, regida exclusivamente pelas leis do mercado e por regras matemáticas, pode se tornar realidade. 

Algo que não seria possível de se obter somente pela via do Direito, visto que a perda de poder não é de interesse daqueles que controlam as moedas nacionais, agora se torna realidade graças à evolução tecnológica aplicada a determinados princípios da economia.

Além de criarem uma alternativa à moeda nacional, as milhares de criptomoedas em circulação também podem concorrer entre si, gerando benefícios e opções de escolha para os indivíduos e forçando o Estado a se comportar de forma mais responsável em relação à política monetária, conforme previsto por Hayek em suas teorias sobre o fim do monopólio do estatal para emissão de moedas (HAYEK, 1976, p. 16)1

Para o autor, as moedas nacionais sobrevivem com tantos defeitos porque a iniciativa privada não tem permissão de fazer uma melhor. Por essa lógica, as criptomoedas podem trazer uma antes difícil de ser imaginada liberdade monetária.

A liberdade monetária significa a possibilidade de os indivíduos escolherem livremente qual moeda preferem usar. É o contrário da obrigação imposta pelas leis de curso forçado da moeda, que vigem em praticamente todos os países atualmente e que existem e perduram “por força de lei, não pela escolha do mercado” (ULRICH, 2014, p. 102)2.

Esse seria um caminho de volta às origens do dinheiro, época em que o controle estava nas mãos da sociedade, não do Estado.

Na configuração atual, em que o Estado detém o monopólio da emissão de moeda, com um Banco Central regulando todo o sistema bancário, existem poucos limites para a intervenção estatal no sistema monetário. 

Emitir dinheiro sem limites gera pelo menos três danosas consequências, segundo Hülsmann (2008, p. 175):3

Sendo essa emissão feita pelo próprio Estado, surgem outros problemas, como excessiva centralização de poder nas mãos do governo; inflação fiduciária; viabilização da extensão de períodos de guerra para além do que ocorreria com um dinheiro lastreado; tirania; desorganização das instituições financeiras; substituição da poupança pelo crédito como motor de crescimento; desconfiança da população e aumento da especulação financeira (HÜLSMANN, 2008, p. 176-191).

Foi para evitar tais consequências que economistas adeptos do liberalismo formularam diversas teorias para uma moeda livre da ingerência estatal.

Nenhuma delas chegou a ser implantada, especialmente pelo fato de dependerem de decisão política.

Uma decisão neste sentido é altamente improvável, visto que quem tem o poder de tomá-la é justamente quem mais se beneficia da atual configuração (ULRICH, 2014, p. 104). 

Hayek (1990, p. 134)4 defendia que a única forma de forçar os governantes a tomarem uma decisão desse tipo seria por meio da educação da população.

Se os indivíduos fossem conscientes dos danos causados por uma moeda controlada de forma irresponsável pelo Estado, poderiam confrontar seus representantes no governo a mudarem o estado de coisas.

A questão é que mesmo o controle da educação passa, em boa parte, pelas mãos do Estado, minando as esperanças de que tal tipo de conscientização venha a acontecer.

Em estudo recente sobre a história do dinheiro, Martin (2016)5 lembra que as moedas privadas surgem em situações nas quais a atuação estatal ficava abaixo do mínimo aceitável pela sociedade e questiona como elas poderiam funcionar fora do sistema bancário regulamentado.

Curiosidades secundárias, como as moedas comunitárias, mostram que a moeda privada pode existir sem a ajuda do Estado.

O episódio da querela bancária irlandesa e o sucesso precoce dos banqueiros mercantis do século XVI na criação de moeda privada demonstram que a escala não é, necessariamente, um obstáculo.

A história prova que o poder de emitir dinheiro tem uma atração irresistível.

Se o Estado o permite, seja por comissão ou por omissão, os emissores particulares tirarão todo o partido que puderem.  A década posterior à crise não foi uma exceção a essa regra geral.

Para o estudioso da guerrilha monetária, a única pergunta importante seria como esse novo sistema do mercado de crédito poderia dar certo.

A chave para a emissão de moeda é a capacidade de fazer a promessa encantada da estabilidade junto com liberdade.

O Estado pode fazer essa promessa porque possui a autoridade.

Cooperativas de crédito podem fazê-la porque compartilham uma ideologia.

Dentro do grande acordo monetário, os bancos puderam fazê-la porque combinavam crédito na praça com o endosso estatal.

Mas como fazer isso fora do sistema bancário regulamentado, no vasto mundo do mercado de crédito moderno?

(MARTIN, 2016, pos. 4232)

A tecnologia viabiliza a liberdade monetária

A solução para a separação entre Estado e moeda, portanto, pode estar nas viabilidades trazidas pela tecnologia, sobretudo pelo aumento da capacidade computacional e pela ampliação da liberdade de informação propiciados pela internet. 

Uma moeda virtual, como o Bitcoin, não espera respaldo legal para começar a operar. Criada pelos indivíduos, ela aproveita as possibilidades tecnológicas para existir e evoluir, à margem do consentimento do Direito.

Assim, em vez de se precisar de uma decisão política ou legal para a mudança, o inverso acaba ocorrendo: é o Direito que corre atrás dos fatos, como deveria ser.

Para Jon Matonis, conselheiro da Fundação Bitcoin, a moeda virtual mais popular do mundo não é meramente uma forma de realizar transações globais a baixo custo. Sua principal razão de ser é servir como um instrumento para impedir a tirania monetária. Segundo o autor, o surgimento da moeda em 2008 é uma resposta à crise econômica que explodiu naquele ano, tendo como grande marco a falência do banco Lehman Brothers (MATONIS, 2012)6.

Em novembro de 2009, um ano depois da falência do Lehman Brothers, o apoio total dos Estados ao setor bancário foi estimado em quase 25% do PIB mundial, ou cerca de 14 trilhões de dólares (ALESSANDRI E HALDANE, 2009, p. 2)7.

O Bitcoin adapta-se perfeitamente aos ideais do liberalismo econômico por não poder ser emitido, inflacionado, apropriado ou desvalorizado artificialmente pelo Estado. Além disso, dispensa a dependência de terceiros intermediários.

O Bitcoin foi pensado para ser gerido pela própria rede anônima de usuários, de forma coletiva e com regras matemáticas. Características semelhantes são encontradas em centenas de outras criptomoedas.

Como vimos ao final do módulo dois, o próprio fato de o criador do Bitcoin esconder-se sob um pseudônimo é um indicativo do alinhamento da mais popular moeda virtual aos ideais do liberalismo econômico, pois caso houvesse um inventor a quem se dirigir, toda a ideia da ausência de uma autoridade central e de uma rede horizontal de usuários perderia força.

Vale lembrar, no entanto, que mesmo os mais entusiasmados e liberais adeptos das criptomoedas não advogam que elas surgiram para substituir as moedas nacionais, mas sim para competir livremente com elas. Não se deve esperar, contudo, que os governos aceitem tal competição sem qualquer resistência.

Como resumiu Fernando Ulrich:

Imaginem um mundo sem inflação, sem bancos centrais desvalorizando o seu dinheiro para financiar a esbórnia fiscal dos governantes.

Sem confisco de poupança. Sem manipulação da taxa de juros. Sem controle de capitais. Sem banqueiros centrais deificados e capazes de dobrar a base monetária a esmo e a qualquer instante para salvar banqueiros ineptos que se apropriaram dos seus depósitos em aventuras privadas.

A verdade é que o Bitcoin, ou o que vier a substituí-lo no futuro, impõe uma verdadeira concorrência contra o cartel dos banqueiros e a moeda dos governos.

Por isso, não esperemos nenhuma boa vontade dessa dupla simbiótica em relação ao Bitcoin.

A internet nos permitiu a liberdade de comunicação. O Bitcoin tem o potencial de devolver nossa liberdade sobre nossas próprias finanças. Bitcoin é a internet aplicada ao dinheiro.

ULRICH (2014, p. 105-106)

A esperança é que a legitimidade conferida pelo mercado e pelo uso massivo tenha como consequência uma legitimidade legal que garanta aos usuários das criptomoedas uma maior segurança jurídica, sem que isso signifique uma desnecessária ou excessiva intervenção estatal em um instrumento que foi cuidadosamente pensado para não precisar ser regulamentado por leis que não sejam as regras matemáticas de seu próprio sistema.

Apesar disso, a verdade é que mesmo o Bitcoin – mais popular criptomoeda do mundo – ainda não conseguiu ser efetivamente utilizada como moeda em larga escala. Há várias razões para isso, que serão discutidas na nossa próxima aula. Até lá!

Notas

  1. HAYEK, Friedrich. Choice in currency: a way to stop inflation. London: Institute of Economic Affairs, 1976.
  2. ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.
  3. HÜLSMANN, Jörg Guido. The Ethics of Money Production. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2008.
  4. HAYEK, Friedrich. Denationalisation of Money: The Argument Refined. London: The Institute of Economic Affairs, 1990.
  5. MARTIN, Felix. Dinheiro: uma biografia não autorizada. Kindle edition. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2016.
  6. MATONIS, Jon. Bitcoin Prevents Monetary Tyranny, Forbes, 4 abr. 2012. Disponível em: http://www.forbes.com/sites/jonmatonis/2012/10/04/bitcoin-prevents-monetary-tyranny/. Acesso em: 14 out. 2016.
  7. ALESSANDRI, Piergiorgio; HALDANE, Andrew. Banking on the State. Londres: Banco da Inglaterra, 2009.
Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade