Homo Deus - Yuval Noah Harari

Homo Deus – Uma breve história do amanhã, de Yuval Noah Harari

Homo Deus – Uma breve história do amanhã é o segundo livro do historiador Yuval Noah Harari, publicado originalmente em hebraico em 2015, logo depois da popularização do primeiro livro do autor (Sapiens).

Ao final do primeiro livro, após olhar para o passado e analisar a história da evolução do Homo Sapiens até dominar o planeta, Yuval Noah Harari fazia breves comentários sobre o futuro da nossa espécie.

Em Homo Deus, tal análise é ampliada. A premissa do livro é que as aceleradas mudanças pelas quais o planeta vem passando vão continuar.

Nossa história como espécie tem a mudança como constante. Se formos capazes de compreender como a evolução nos fez como somos hoje, temos uma melhor chance de como as mudanças atuais vão impactar o nosso futuro.

A obra é dividida em três partes. A primeira relembra como o Homo Sapiens conquistou o mundo. A segunda explica como nossa espécie dá significado ao mundo que conquistou, sobretudo por meio de histórias.

A terceira e mais interessante parte do livro elucida como podemos estar perdendo parte do controle e colocando em ameaça a nossa própria existência.

De Homo Sapiens a Homo Deus e de Homo Deus ao nada

Em um pequeno espaço de tempo em termos evolutivos, o Homo Sapiens deixou de ser apenas mais um animal entre tantos e conseguiu dominar o planeta. Essa jornada teve marcos como a Revolução Cognitiva, que nos deu cérebros mais avançados, e a Revolução Agrícola, que nos fez fixar residência e construir amplas comunidades.

Foi apenas a partir da Revolução Científica, iniciada na Europa por volta dos séculos XVI e XVII, que passamos a entender com mais precisão o funcionamento do mundo. Tal entendimento permitiu a nossa espécie manipular o que antes era natural, dando a sensação de que podemos resolver qualquer problema por meio de razão, ciência e tecnologia.

A ambição por rápido progresso e inovação tornou-se uma constante. Ela nos levou a reduzir índices de mortalidade, de violência e de fome. Ela nos ajudou a viver mais, com mais saúde e com mais conforto.

Harari defende que tais avanços só foram possíveis graças à capacidade humana de cooperar em larga escala. A cooperação é viabilizada pela nossa tendência em acreditar em histórias. Histórias como dinheiro, nações e religiões são capazes de unir pessoas em torno de um objetivo comum, mesmo que não passem de mitos.

Um exemplo dado em Homo Deus é a crença na história de que somos uma espécie superior, diferente dos outros animais. Essa superioridade viria de um mito chamado “alma humana”, algo que não possui nenhuma evidência científica de existência.

A religião do Homo Deus

Harari lembra que antes da Revolução Científica, a religião – por meio de suas próprias histórias – tinha o poder de fazer seus seguidores cooperarem em torno de uma causa comum.

Homo Deus traz o exemplo das cruzadas. No século XII, o poder da Igreja Católica era tamanho que conseguiu reunir pessoas de toda a Europa, incluindo rivais, com o objetivo de reconquistar Jerusalém na chamada Terceira Cruzada.

Isso só foi possível porque todas aquelas pessoas acreditavam na mesma narrativa, compartilhavam os mesmos valores e acreditavam que teriam a salvação eterna por conta de seus esforços em participar da Terceira Cruzada.

A partir do momento em que a ciência trouxe explicações racionais para os fenômenos naturais, a religião perdeu força e atualmente já não tem o mesmo poder de outrora. Ao menos não a religião tradicional.

Harari traz uma reflexão sobre o que de fato é a religião. Para o autor, religião não é superstição, não é a crença em seres sobrenaturais capazes de fazer milagres. Ao contrário, religião é a crença em um código de leis que é separado da ação humana.

Com essa definição de religião, Harari considera que correntes de pensamento como o Liberalismo ou o Nacionalismo também podem ser considerados religião. Tais correntes também acreditam que um código de leis morais é equivalente a um código de leis naturais.

As leis morais acreditadas por certas correntes de pensamento não são atribuídas a um deus. Mas também não são atribuídas à criação humana. Elas são, portanto, religiosas, na definição de Harari.

Mesmo com a Revolução Científica, a ciência ainda não é capaz de dar respostas para todas as questões. E algumas das respostas dadas trazem dilemas éticos embutidos. Por isso, nós ainda precisamos da religião.

A que custo o Homo Deus pode moldar a própria vida

A evolução do conhecimento e da tecnologia permitiu que os seres humanos aumentassem sua qualidade de vida. A melhoria, no entanto, teve um custo: o significado.

Para os nossos antepassados, o significado da vida era dado pelos planos que o deus de suas religiões haviam traçados. Esses planos davam significado, mas retiravam poder dos seres humanos.

Por exemplo, se um vírus se espalhasse pela comunidade, as pessoas aceitavam como parte de um plano divino e isso ajudava a lidar as perdas. Ao mesmo tempo, a aceitação as impedia de investigar as causas da epidemia e assim descobrir maneiras de mitigar as perdas. A única resposta era rezar, pois não se acreditava que havia o poder de combater a catástrofe.

Agora a situação se inverteu. Ganhamos poder de resolver problemas e de criar nossas próprias histórias, porém perdemos a sensação de que tudo o que fazemos teria um significado maior, além da própria vida.

O Humanismo e suas variações como religião dominante

A capacidade de criar as próprias histórias e explicar o mundo por meio da razão é o que Harari chama de Humanismo, a religião predominante no mundo atual. A forma de encontrar significado no Humanismo é olhar para dentro de si.

Assim, é ao indivíduo que cabe a tomada de decisões. É o eleitor quem decide seus governantes. É o cliente quem tem sempre razão. É cada pessoa que escolhe o que é bonito ou não.

Claro que o Humanismo não é uma corrente única de pensamento. Entre as suas variações, o autor cita o Nacionalismo, o Socialismo e o Liberalismo. Esta seria a variação dominante.

Na prática, Harari considera ainda não haver alternativa viável ao Liberalismo no mundo atual. A única ameaça ao Liberalismo seria a disrupção tecnológica.

A disrupção tecnológica ameaça o cerne do Liberalismo

Homo Deus - Livro de Yuval Noah Harari

O livro Homo Deus conceitua o Liberalismo como uma variação da religião Humanista que valoriza a experiência humana e a liberdade individual. Os fundamentos dessa variação, portanto, seria o livre-arbítrio, o autoconhecimento, a capacidade individual de decidir e encontrar significado.

A questão levantada por Harari é: quanto nós sabemos de nós mesmos? Quantas das ideias que existem na sua cabeça são realmente suas? Quais das suas decisões realmente foram tomadas com livre-arbítrio?

A ciência diz que sabemos muito pouco sobre nós mesmos, muito pouco sobre o funcionamento exato do nosso cérebro. Harari acrescenta que o pouco que nós sabemos não suportam os princípios do Liberalismo.

O autor afirma, por exemplo, que o livre-arbítrio simplesmente não existe. A ideia de que nossas escolhas são livres e não pré-determinadas não passaria de uma ilusão.

Aqui faço um parêntese para lembrar de onde vêm algumas dessas ideias do autor. Harari é praticante de Meditação Vipassana, uma das mais antigas técnicas de meditação conhecidas e que supostamente foi utilizada pelo Buda histórico para alcançar a iluminação.

Não está dito neste livro, mas o autor já afirmou que pratica duas horas de meditação todo dia e uma vez por ano se recolhe em retiros mais longos, em que passa dias meditando. Muitas das considerações sobre ilusões mentais trazidas pelo livro parecem sofrer forte influência direta dessa “arte de viver”.

Isso fica bem claro quando o autor afirma não existir um verdadeiro eu. O não-eu, a dissolução do ego, é um dos pilares do pensamento budista. E, sem um “eu”, toda a base do Liberalismo fica prejudicada. Caso haja interessa pelo tema, leia Por que budismo funciona?, livro em que Robert Wright procura associar evidências racionais aos ensinamentos budistas.

Em Homo Deus, no entanto, Harari se atém a argumentos mais científicos. O autor explica, por exemplo, que a neurociência já mostrou que nossas decisões não passam de reações bioquímicas no nosso cérebro. Ou seja, as decisões seriam apenas um processo natural do corpo, como a digestão ou o crescimento de cabelo.

Como a tecnologia vai governar as nossas vidas

Se nossas decisões são meramente um processo, em tese é possível substituí-las por algoritmos.

Embora algoritmo para muitos seja um conceito abstrato, na prática um algoritmo nada mais é do que uma receita de bolo, ou seja, um processo. Um algoritmo é uma sequência de etapas que utiliza regras e procedimentos lógicos pré-definidos para chegar a um resultado específico.

Todos os dias, seres humanos são substituídos por algoritmos. O processo começou por tarefas mais básicas e repetitivas, como apertar parafusos em uma fábrica, mas logo vai se expandindo por todas as tarefas humanas.

Antes se dizia que apenas as tarefas baseadas em criatividade estariam a salvo. No entanto, algoritmos já escrevem roteiros de filmes, pintam quadros e compõem música. Nenhum trabalho parece estar a salvo no longo prazo.

A substituição de humanos por máquinas, já em curso, cria o perigo do surgimento de toda uma massa de pessoas cujo trabalho é completamente dispensável. Isso abre margem para soluções como a renda básica universal.

Mas ainda há outro perigo. Considerando-se que nossas decisões são meros processos, elas podem muito bem ser hackeadas.

Com a quantidade de dados coletados por todos os dispositivos tecnológicos que nos rodeiam, as máquinas sabem mais sobre você do que você mesmo. Esse conhecimento é utilizado para você tomar decisões como comprar algo ou votar em alguém. Onde está o livre-arbítrio nesses casos?

Isso não é ficção científica nem futurologia. Esses processos já estão acontecendo hoje, com impactos reais em toda parte do mundo. Harari considera que a evolução tecnológica ameaça o posto do Homo Sapiens como governante do mundo.

O que fazer, então? Duas soluções são apresentadas: unir forças com a tecnologia ou lutar contra ela. Tais soluções são definidas por Harari como Tecnohumanismo e Dataísmo.

Tecnohumanismo representa a união de forças entre humanos e máquinas

A primeira solução apresentada em Homo Deus é o Tecnohumanismo.

Tecnohumanismo é a a fusão dos humanos com as máquinas. É uma maneira de manter a paz com os algoritmos e utilizar a tecnologia para manter a espécie humana como governante do mundo, para melhorar a qualidade de vida das pessoas e para reduzir os danos causados pela automação do trabalho.

A fusão de humanos com máquinas já existe há algum tempo. Basta pensar em braços ou pernas biônicos para amputados, marca-passos para cardíacos ou sintetizadores de voz para quem tem problemas para falar.

Mas o Tecnohumanismo deve ir além disso. O Exército dos Estados Unidos, por exemplo, já testa um capacete que estimula a atividade cerebral, deixando seus soldados mais atentos, mais rápidos e mais fortes.

O lado negativo é que o investimento em tecnologia tende a tornar as pessoas ainda menos empáticas. Atualmente, apenas com as redes sociais, já vemos uma redução na capacidade de compreender o ponto de vista de outras pessoas. A tendência é que isso piore com a crescente fusão entre humanos e máquinas.

Dataísmo significa deixar os algoritmos fazerem o seu trabalho

A segunda solução apresentada no livro é o Dataísmo.

Por esta solução, nós humanos deveríamos deixar os algoritmos fazerem o seu trabalho.

O Dataísmo advoga que tudo o que existe ou é dado ou é processamento de dados. Desde a posição do sol até a posição política de um indivíduo, tudo não passa de dados.

Os humanos não passariam de sistemas de processamento de dados. Assim como as máquinas, com a diferença que estar são muito mais eficientes em tratar dados em alto volume.

Nosso papel seria desenvolver algoritmos cada vez mais eficientes em processar os dados do mundo, de modo a resolver problemas e aumentar a qualidade de vida no planeta.

Mesmo esse papel estaria ameaçado. Com o aprendizado de máquina, é provável que os próprios algoritmos tornem-se capaz de se desenvolver sozinhos.

Neste cenário, restaria aos humanos capitular diante de uma espécie superior.

Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade