Lei 14.478/2022 regulamenta a prestação de serviços de ativos virtuais, mas não é o Marco Legal das Criptomoedas

Lei 14.478/2022

A Lei 14.478/2022 dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, além de prever crimes com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros.

A lei resulta do Projeto de Lei 2.303/2015 (PL 4.401/2021, na numeração do Senado), do Deputado Áureo Ribeiro. Sancionada em 21 de dezembro de 2022, ela entrou em vigor no dia 20 de junho de 2023, após uma vacatio legis de 180 dias.

Anteriormente neste blog nós já analisamos o PL do Deputado Áureo Ribeiro e outros projetos relacionados à regulamentação de criptomoedas.

Neste artigo, nós vamos ver em detalhes aspectos práticos da lei, incluindo:

O primeiro passo é entender que a Lei 14.478/2022 não regulamenta os criptoativos e, por isso, não deveria ser chamada de Marco Legal das Criptomoedas.

A Lei 14.478/2022 não regula criptoativos e sim prestadoras de serviços de ativos virtuais

Embora alguns tratem a Lei 14.478/2022 como um Marco Legal dos Criptoativos ou das Criptomoedas, a verdade é que este normativo dispõe-se a regulamentar as prestadoras de ativos virtuais. Isso fica claro logo no primeiro parágrafo:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais.

O parágrafo único deste mesmo artigo deixa claro que a lei não se aplica aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei nº 6.385/1976. Assim, a lei não altera nenhuma competência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Os 3 tipos de ativos virtuais

Vamos entender a diferença, começando pela distinção doutrinária entre os tipos de ativos virtuais:

O que o parágrafo único do artigo primeiro quer dizer é que a CVM é o órgão responsável por regular os Security Tokens. Eles seguem as regras da Lei 6.385/1976, voltada para o mercado de capitais.

Os Utility Tokens (pontos e recompensas de programas de fidelidade), por sua vez, foram excluídos da definição de ativos virtuais. Tal exclusão encontra-se no inciso III do artigo 3º da lei, como veremos a seguir.

Por fim, o Banco Central do Brasil (Bacen), entidade da Administração Pública federal, ficou responsável por regular os Payment Tokens. A competência foi definida pelo Decreto 11.563, de 13 de junho de 2023.

A definição legal de ativo virtual

A lei classifica os Payment Tokens como ativos virtuais, cuja definição legal é a seguinte:

Considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos:

Observe-se que não há na definição legal a obrigatoriedade de o ativo virtual utilizar blockchain ou outra tecnologia descentralizada e distribuída. A rigor, não precisa nem ser um criptoativo, já que a exigência de criptografia não está na definição legal.

A lei traz uma definição mais ampla. Basta ser a representação digital de valor para pagamentos ou investimentos que não seja moeda fiduciária ou eletrônica nem token utilitário ou securitário. Isso engloba os criptoativos e as criptomoedas, mas não se restringe a eles.

O foco na regulamentação da prestação de serviços de ativos virtuais

Embora traga a definição de ativo virtual, a Lei 14.478/2022 não se destina a regulamentá-los. Como se depreende da leitura do artigo primeiro, o objetivo da lei é regulamentar apenas a prestação de serviços de ativos virtuais.

Existem basicamente três formas de se obter um ativo virtual:

  1. Por mineração (emissão originária).
  2. Por transferência de outro usuário, seja por doação ou como forma de pagamento (peer to peer).
  3. Por compra em uma corretora de ativos virtuais.

A Lei 14.478/2022 foca no terceiro ponto, ou seja, na obtenção de ativos virtuais por meio de corretas. E a principal preocupação do legislador foi encontrar formas de combater crimes com a utilização de ativos virtuais.

Regras para o funcionamento de prestadoras de serviços de ativos virtuais

Como o foco da lei é regular a prestação de serviços de ativos virtuais, houve uma preocupação em definir o que s

Conforme o artigo 5º, prestadora de serviços de ativos virtuais é a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos cinco serviços de ativos virtuais definidos pela lei:

  1. Troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira (corretoras, exchanges)
  2. Troca entre um ou mais ativos virtuais
  3. Transferência de ativos virtuais
  4. Custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais (meta masks, wallets)
  5. Participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais

A pessoa jurídica não precisa prestar exclusivamente esses serviços, podendo cumulá-los com outras atividades, na forma da regulamentação a ser editada pelo Poder Executivo.

Note-se que, se a pessoa jurídica executar esses serviços em nome próprio, e não de terceiros, ela não se enquadra na definição legal.

Assim, caso um grupo de pessoas físicas associe-se em uma pessoa jurídica cuja atividade seja comprar e vender ativos virtuais e distribuir para o quadro societário, essa pessoa jurídica não se enquadrará na definição legal, por estar operando em nome próprio e não de terceiros.

Do mesmo modo, pela letra da lei, pessoas físicas que transacionam ativos virtuais entre si (peer to peer) ficam de fora da definição legal.

A necessidade de autorização do Banco Central para a operação de serviços de ativos virtuais

Além da definição legal, outra importante disposição da lei é que as prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no Brasil mediante prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública federal.

Este órgão, conforme disposto no Decreto 11.563, de 13 de junho de 2023, é o Banco Central do Brasil, que ganhou as seguintes competências:

As competências do Decreto somam-se às competências listadas pelo artigo 7º da lei:

Diretrizes para prestação de serviços de ativos virtuais

O Banco Central deverá expedir ato para estabelecer as hipóteses e os parâmetros em que a autorização de funcionamento poderá ser concedida mediante procedimento simplificado.

Tal ato deve estabelecer parâmetros para a prestação de serviços de ativos virtuais, observando as sete diretrizes dispostas pelo artigo 4º da lei:

  1. Livre iniciativa e livre concorrência
  2. Boas práticas de governança, transparência nas operações e abordagem baseada em riscos
  3. Segurança da informação e proteção de dados pessoais
  4. Proteção e defesa de consumidores e usuários
  5. Proteção à poupança popular
  6. Solidez e eficiência das operações
  7. Prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais

Todas as pessoas jurídicas que já operavam com ativos virtuais terão um prazo de pelo menos seis meses para se adequar às novas regulações.

Por fim, vale a pena observar que agora ficou explícita a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, no que couber, às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais. A disposição encontra-se no artigo 13 da Lei 14.478/2022.

Criptoestelionato: a fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros

A partir do artigo 10, a Lei 14.478/2022 preocupa-se em estabelecer mecanismos de combate a crimes realizados com o uso de ativos virtuais.

A primeira mudança é alterar o Código Penal para criar o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros, o que vem sendo chamado pelo mercado de “criptoestelionato”. A tipificação é a seguinte:

Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

A pena para esse novo crime será de reclusão de quatro a oito anos, além de multa, o que é uma punição um pouco mais rígida do que a do estelionato tradicional do do art. 171 do Código Penal.

Além disso, as prestadoras de serviços de ativos virtuais foram equiparadas às instituições financeiras para fins de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional previstos na Lei 7.492/1986. Assim, uma exchange que insista em atuar sem autorização do Banco Central, por exemplo, pode ser enquadrada em um dos crimes contra o Sistema Financeiro nacional.

Também foi estabelecido um aumento na pena dos crimes de “lavagem” ou ocultação de valores. A penalidade fica aumentada de um a dois terços se os crimes definidos na Lei 9.613/1998 forem cometidos de forma reiterada, por intermédio de organização criminosa ou por meio da utilização de ativo virtual.

Conclusão: o impacto da Lei 14.478/2022 no mercado de criptoativos

A Lei 14.478, sancionada em 21 de dezembro de 2022 e com vigência a partir de 20 de junho de 2023, dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais e dispõe sobre crimes envolvendo ativos virtuais.

Embora seja tratada por muitos como um Marco Legal das Criptomoedas, vimos neste artigo que o objetivo da lei é regulamentar principalmente a prestação de serviços de ativos virtuais e não regulamentar os criptoativos em si.

As principais inovações da lei foram:

Para quem lida com criptoativos, a atenção deve agora estar voltada para as regulamentações a serem publicadas pelo Banco Central do Brasil.

Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade