A privacidade morreu.
Você provavelmente ouviu essa frase, principalmente entre 2010 e 2016, quando as redes sociais cresceram exponencialmente com modelos de negócios baseados na exploração de dados pessoais coletados de seus usuários.
Desde 2016, no entanto, o debate sobre privacidade tomou novos rumos. O escândalo de dados Facebook – Cambridge Analytica e, principalmente, a edição do GDPR (General Data Protection Regulation), deram início a uma nova etapa na proteção de dados pessoais.
Hoje, segundo Carlos Affonso Souza1, é possível afirmar que a privacidade não apenas não morreu como está mais viva do que nunca.
O papel dos dados pessoais no cabo de guerra de quatro pontas
Lawrence Lessig2 escreveu ainda no final dos anos 1990 que a regulação da internet seria uma espécie de cabo de guerra de quatro pontas envolvendo Direito, Sociedade, Economia e Tecnologia.
Se há alguns anos a Tecnologia puxava com força uma dessas pontas, a partir de 2016 o Direito e a Sociedade começaram a reequilibrar um pouco o jogo.
Exemplo de como a privacidade tem ganhado importância é a mudança de discurso de Mark Zuckerberg, fundador do Facebook.
Em 2010, Zuckerberg chegou a afirmar ao Guardian que a privacidade não era mais uma norma social. Ele o fazia em defesa do modelo de negócios de sua rede social, baseado em coletar dados pessoais que são posteriormente vendidos a anunciantes para a veiculação de publicidade.
Já em 2019, em declaração ao Telegraph, Zuckerberg anuncia uma guinada nessa ideia. Em artigo publicado no próprio Facebook3, o fundador explica sua visão para as redes sociais centradas na privacidade.
Essa virada no debate traz a privacidade de volta para a condição de direito e não de mero desejo. Um caminho que a própria privacidade já havia percorrido no final do século XIX.
As origens da privacidade como um direito
O desejo de privacidade, de separar o que é público do que é privado, parece acompanhar o homem desde sempre.
No século VIII a.C., por exemplo, o desejo de privacidade aparece de forma clara na Ilíada, de Homero. No diálogo entre Agamenon e Aquiles pela posse da escrava Briseis, Aquiles expulsa as pessoas de sua tenda alegando que ali é o espaço dele.
Na época, ainda não havia o termo privacidade como conhecemos atualmente. Este conceito ganhou força a partir de fins do século XVIII com a ascensão da burguesia após a Revolução Francesa. Mesmo nesta época, contudo, a ideia de um espaço privado ainda era vista mais como um desejo e menos como um direito.
A ideia de privacidade como um direito consolida-se em 1890, com a publicação do artigo The Right to Privacy, publicado por Samuel Warren e Louis Brandeis na revista Harvard Law Review4.
Warren e Brandeis defenderam a privacidade como um direito de o indivíduo separar-se do corpo social, da esfera pública, do Estado. A privacidade assim pode ser entendida como o direito a um espaço particular no qual o Estado não pode se intrometer.
A privacidade não morreu
Nos primórdios das redes sociais, o uso de dados pessoais era praticamente invisível. Os usuários estavam entusiasmados em reencontrar amigos, fundar comunidades online, compartilhar ideias. Tudo isso sem pagar nada em dinheiro.
Com o passar dos anos, foi ficando claro que tudo aquilo tinha um custo. E que esse custo estava sendo pago com os dados pessoais de cada usuário.
Parte dessa consciência deve-se a grandes escândalos de vazamentos de dados, como o já citado caso da Cambridge Analytica em 2016 e as revelações de Edward Snowden entre 2012 e 2014.
Hoje, com a GDPR regulando fortemente o mercado europeu, leis semelhantes vigorando em diversos estados norte-americanos e a LGPD dando seus primeiros passos no Brasil, pode-se afirmar que a privacidade está mais viva do que nunca.
Texto baseado em notas de aula do professor Carlos Affonso Souza ministrada em 4 de agosto de 2020 na pós-graduação em Direito Digital do ITS Rio/UERJ.
Notas
- SOUZA, Carlos Affonso. Proteção de dados: Fundamentos e Princípios. 4 de agosto de 2020. Notas de Aula.
- LESSIG, Lawrence. The Law of Horse: what CyberLaw might teach. 1999.
- ZUCKERBERG, Mark. A Privacy-Focused Vision for Social Networking. 2019
- WARREN, Samuel D. BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review. Vol. IV. December 15, 1890. No. 5.