Estado ou Sociedade: quem controla o dinheiro?

Quem controla o dinheiro

Na aula anterior do curso Direito das Criptomoedas, entendemos um pouco sobre a origem do dinheiro de acordo com a Teoria Não Ortodoxa.

Entender um pouco de história é interessante. Mas, repetindo a frase de Locke (2005)1, mais importante do que compreender a origem do poder é entender quem deve controlá-lo.

Qualquer que seja a teoria – convencional ou não ortodoxa – adotada para a origem do dinheiro, uma concordância existe. Ele foi criado pela sociedade, a partir de uma necessidade prática, e só depois passou a ser controlado pelo Estado.

[…] só podemos entender por completo a origem do dinheiro se aprendermos a visualizar o estabelecimento do procedimento social que estamos tratando, como o resultado espontâneo, a resultante não premeditada, de certos esforços individuais dos membros de uma sociedade, os quais se empenharam, pouco a pouco, a discriminar os diferentes graus de vendabilidade de cada commodity.

(MENGER, 2009, p. 39)2

O entendimento de que o dinheiro foi uma criação de particulares, e não do Estado, é essencial para a compreensão do surgimento das criptomoedas.

E a prova de que o dinheiro é uma instituição social, e não governamental, é o que acontece quando a sociedade se vê impedida total ou parcialmente de utilizar os meios tradicionais, controlados ou chancelados pelo Estado.

O que ocorre quando a sociedade não pode usar o dinheiro controlado pelo Estado


Na Irlanda, em 1970, quando os bancos fecharam por mais de seis meses por não entrarem em acordo com os bancários, os irlandeses se viram forçados a criar um sistema de créditos e débitos personalizado, confiando em cheques que não podiam ser compensados (MURPHY, 1978, p. 44)3.


Foi também o que aconteceu na Argentina, em 2001, depois que o governo limitou a quantidade de dinheiro que os indivíduos podiam sacar de suas contas, fazendo com que a população criasse substitutos de dinheiro que chegaram a representar um terço de todo o dinheiro em circulação no país (DE LA TORRE, LEVY YEYATI, SCHMUCKLER, 2003, p. 43-107)4.


Exemplos similares de substitutos privados de dinheiro podem ser encontrados nos países que faziam parte da União Soviética e mesmo em economias sofisticadas como a inglesa, onde existe a Libra de Brixton no distrito londrino de mesmo nome, ou a suíça, onde cooperativas de crédito mútuo movimentaram o equivalente a 1,5 bilhão de francos suíços em 2011 (MARTIN, 2016, pos. 1256)5.

Os 3 elementos em compõem a tecnologia do dinheiro

Martin (2016) afirma que o dinheiro é uma tecnologia social composta por três elementos:

Esse terceiro elemento é crucial. Todo dinheiro é crédito, mas nem todo crédito é dinheiro: e o que faz a diferença é a possibilidade de transferência.

Uma promessa de dívida limitada para sempre a duas partes não passa de um empréstimo. É crédito, mas não é dinheiro. Só quando essa promessa de dívida pode ser passada a um terceiro — quando ela pode ser “negociada” ou “endossada”, no jargão das finanças — é que o crédito ganha vida e começa a servir como dinheiro.

Dinheiro, em outras palavras, não é apenas crédito — mas crédito transferível. (MARTIN, 2016, pos. 490).

Por essa lógica, a utilidade primária da moeda é registrar e mensurar dívidas, além de facilitar sua transferência entre pessoas.

Para que o crédito exista, um indivíduo precisa acreditar que o devedor será capaz de quitar o débito. Para esse mesmo crédito virar dinheiro, o indivíduo precisa acreditar que terceiros também aceitarão como pagamento a promessa de dívida do devedor.

Os bancos começam a participar do controle do dinheiro

Foi justamente essa necessidade de aceitação de transferência de dívidas que fez com que os governos e os bancos reconhecidos por governos ganhassem relevância para controlar o dinheiro.

O Estado teria a condição necessária para fazer com que toda a sociedade aceitasse como pagamento determinada promessa de dívida, visto ser, em teoria, a manifestação mais concreta da sociedade.


Knapp (1924, p. 88)6, expoente da escola de pensamento conhecida como Cartalismo, afirma que os governos e seus agentes são os únicos emissores viáveis de dinheiro, visto que este é uma criatura do Direito e só o Estado tem o poder de dizer o Direito.

O raciocínio faz sentido, salvo quando o interesse dos governantes começa a se dissociar dos interesses da maioria da sociedade.

Quando as moedas eram cunhadas em metais preciosos, havia uma garantia contra essa dissociação.

Se o governante, usando o poder do Direito, depreciasse a moeda demasiadamente, seus portadores sempre poderiam vender o peso da moeda em metal no mercado.

Em contrapartida, o governante poderia diminuir a quantidade de metal precioso utilizado na cunhagem de novas moedas.

Os primórdios da política monetária

Essa sequência de ação e reação ocorreu até o século XIV, quando foi publicado o Pequeno tratado da primeira invenção das moedas, de Nicole Oresme, obra considerada precursora do que hoje se chama de política monetária.

O tratado foi elaborado em 1355 a pedido da Casa Valois, que havia colocado o reino da França em uma crise financeira e agora precisava de argumentos para arrecadar dinheiro junto à população sem necessariamente recorrer ao aumento de tributos.

A obra buscava responder se era direito do soberano manipular o padrão monetário e, se fosse, em no interesse de quem ele deveria fazer isso (MARTIN, 2016, pos. 1608).

A resposta de Oresme era a de que o dinheiro era propriedade de toda a sociedade e que sua emissão, um serviço público essencial, deveria ser feita no interesse geral da população.

Ainda que, para a utilidade comum, o príncipe deva fabricar a moeda e assiná-la, como foi dito, não decorre, no entanto, disso que ele seja ou deva ser proprietário e senhor da moeda corrente em seu principado, porquanto a moeda é o instrumento equivalente para permutar as riquezas naturais entre os homens. (ORESME, 2004, p. 44)7.

A proposta de reforma monetária de Oresme previa que o Direito regulamentasse a gestão do soberano sobre o dinheiro, de forma a limitar o impulso de emitir moeda para financiar a própria extravagância.

Para tanto, era preciso resolver um paradoxo: criar regras para a emissão de dinheiro, evitando que o padrão fosse infinitamente flexível, ao mesmo tempo em que essas regras não levassem à demasiada escassez de dinheiro no mercado. Para o tratado,

fica evidente que o dinheiro é coisa que pertence à comunidade. Assim, portanto, e para que o príncipe não possa maliciosamente inventar causa alguma de alteração na proporção das moedas, […] afirmamos que pertence somente à comunidade decidir e determinar se, quando, como e até onde essa proporção pode ser alterada; e que ao príncipe não compete, de maneira alguma, arrogar para si tal resolução.

(ORESME, 2004, p. 52-53)

O problema é que não havia alternativa viável ao dinheiro do soberano, que assim não se via forçado a seguir as diretrizes da incipiente política monetária.

Isso só veio a acontecer com o fortalecimento do comércio internacional e o surgimento dos bancos modernos, a partir da necessidade de comerciantes de fazer cálculos financeiros, conversão de moedas de diferentes autoridades e registro de créditos e débitos.

A ascensão dos bancos será o tema da nossa próxima aula. Até lá!

Notas

  1. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  2. MENGER, Carl. On the Origins of Money. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2009.
  3. MURPHY, Antoin. Money in an Economy without Banks: The case of Ireland. The Manchester School of Economic and Social Studies, v. 46, n. 1, pp. 41-50, 1978.
  4. DE LA TORRE, Augusto; LEVY YEYATI, Eduardo; SCHMUCKLER, Sergio. Living and Dying With Hard Pegs: The Rise and Fall of Argentina’s Currency Board. Policy Research Working Paper, n. 2980. Washington: World Bank, 2003. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/19040. Acesso em: 22 mar. 2016.
  5. MARTIN, Felix. Dinheiro: uma biografia não autorizada. Kindle edition. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2016.
  6. KNAPP, Georg Friedrich. The State Theory of Money. Londres: Macmillan, 1924.
  7. ORESME, Nicole. Pequeno tratado da primeira invenção das moedas. 21 ed. Curitiba: Segesta, 2004.
Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade