Meio de troca secundário, proper money, quasi-money… nas últimas aulas do curso Direito das Criptomoedas, vimos algumas hipóteses para definir a natureza jurídica das moedas virtuais.
Essa investigação teórica é importante para saber se podemos definir as criptomoedas como moeda de fato.
Em tese, a classificação do Bitcoin como moeda é importante porque, conforme visto, a Constituição Federal dispõe que compete exclusivamente à União a emissão de moeda, competência esta exercida por meio do Banco Central.
Na prática, no entanto, pouco importam as definições teóricas da economia acerca da definição do Bitcoin e de outras criptomoedas. Isso porque, no Brasil, só é moeda o que a lei determina como tal.
Neste sentido, esclarecedor é o voto do então Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau como relator no julgamento do Recurso Extraordinário 478410:
Ao deslinde da questão importa necessária consideração do conceito de moeda, conceito jurídico. Que aqui se trata de um conceito jurídico – não de conceito específico da Ciência Econômica – isso percebemos ao cogitar das funções básicas que a moeda desempenha na intermediação de trocas e como instrumento de reserva de valor e padrão de valor.
O chamado poder liberatório da moeda permite ao seu detentor, sem limites ou condições, a exoneração de débitos de natureza pecuniária.
A suspensão da conversibilidade da moeda jamais impediu fossem, aquelas funções, correntemente instrumentadas.
Circulação e aceitação da moeda não encontram fundamento no lastro metálico que suportaria a sua conversão ou no material de cunhagem de peças monetárias.
A desmaterialização que caracteriza a evolução das suas formas de moeda decorre da circunstância de a circulação monetária estar ancorada na definição, pelo direito posto pelo Estado, de determinado instrumento ou padrão como moeda.
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p. 4)1
O voto deixa claro que moeda constitui, a um só tempo, parâmetro econômico e objeto da ordem jurídica, sendo mais uma convenção e menos um conceito objetivo.
O Ministro Eros Graus, inclusive, lembra que vocábulos como dólar ou real “só ganham significado quando referidos a normas integradas em determinado ordenamento jurídico, que os contemple como indicativos da unidade monetária juridicamente válida” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p. 11).
Em seu voto, cita a Medida Provisória 542, de 30 de junho de 1994, que “dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do Real e os critérios para conversão das obrigações para o Real, e dá outras providências”:
A moeda, pois, não é senão um nome sacralizado pela ordem jurídica.
Em 30 de junho de 1994 ano o “real” passou a ser moeda [= unidade monetária] brasileira única e exclusivamente porque assim o disse, definindo-o como tal, o direito positivo brasileiro, inovado pela Medida Provisória 542/94.
Todos as demais unidades monetárias como tais definidas pelos ordenamentos jurídicos de outros Estados não revestem, no quadro do direito positivo brasileiro, a qualidade de moeda.
Não encerram os atributos monetários de validade e eficácia indispensáveis ao cumprimento de sua função de padrão de valor e de liberação de débitos pecuniários.
Podem, é certo, consubstanciar reserva de valor, objeto de avaliação patrimonial, coisa no sentido jurídico [= elemento que se inclui no patrimônio de sujeito de direito], constituindo instrumento de pagamento nos mercados externos. Seu comércio é, contudo, submetido a regras próprias e específicas.
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p. 11-12)
Antes da edição da Medida Provisória 542, a alta constante dos preços no Brasil fez com que outras moedas fossem informalmente adotadas pelo mercado para que pudessem cumprir as funções de meio de troca, reserva de valor e unidade de conta.
Não houvesse leis forçando o curso da moeda emitida pelo Estado, é provável que a população migrasse da moeda nacional para moedas mais estáveis. Nas palavras de Ulrich:
No Brasil passado, a combinação de leis de curso forçado e da alta inflação da oferta de moeda nacional conduziu a um espetáculo de horror em questões monetárias.
Dinheiro físico (papel-moeda) era usado nas transações do dia a dia, enquanto o dólar (papel-moeda) era entesourado nos lares.
Os preços e o cálculo econômico eram realizados na moeda nacional, mas, desde cedo, com o suporte fundamental da indexação, que permitia um mínimo de racionalidade nas decisões econômicas e de preservação do poder de compra.
E, dependendo dos mercados, o próprio dólar era a unidade de conta utilizada, ato comum no setor imobiliário, por exemplo.
De fato, sem a coerção estatal, uma anomalia monetária dessa magnitude seria rapidamente evitada; os cidadãos migrariam ao uso de moedas seguras e estáveis tão logo quanto possível.
Uma moeda nacional inflacionada pelo estado, que perde poder aquisitivo constantemente, dificilmente mantém as propriedades de reserva de valor e unidade de conta por si só.
(ULRICH, 2014, p. 94)2
Essa migração para outras moedas nacionais, atualmente, não é possível.
Segundo o ordenamento jurídico nacional e conforme o entendimento do STF, qualquer outra moeda que não o real não tem validade nem eficácia dentro do território brasileiro para cumprir a função de padrão de valor e liberação de dívidas. As demais moedas estrangeiras são submetidas a regras próprias e específicas.
A falta de reconhecimento legal para as criptomoedas
Diferente das moedas estrangeiras, no entanto, as criptomoedas não são reconhecidas legalmente nem mesmo como moeda.
Conforme visto, a Medida Provisória 542, de 30 de junho de 1994, foi o instrumento legal que estabeleceu o real como moeda nacional.
Reeditada 12 vezes, ela foi convertida na Lei 9.069, de 29 de junho de 1995, que “dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do REAL e os critérios para conversão das obrigações para o REAL, e dá outras providências”.
Antes do Plano Real, no entanto, o ordenamento jurídico pátrio já abrigava o Decreto-lei 857, de 11 de setembro de 1969, que “consolida e altera a legislação sobre moeda de pagamento de obrigações exequíveis no Brasil”. Tal decreto determina, em seu art. 1º, que
São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que exequíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro.
Tais nulidades não se aplicam, contudo, a diversos tipos de contrato ligados a importação, exportação, compra e venda de câmbio e outros negócios jurídicos envolvendo contratantes estrangeiros, conforme rol apresentado no artigo 2º do Decreto-lei 857.
Posteriormente, a Lei 10.192, de 14 de fevereiro de 2001, determinou, em seu artigo 1o, que “as estipulações de pagamento de obrigações pecuniárias exequíveis no território nacional deverão ser feitas em Real, pelo seu valor nominal”, vedando, sob pena de nulidade, estipulações de pagamento expressas em ou vinculadas a ouro ou moeda estrangeira.
A taxação das operações de câmbio e a remessa de valores para o exterior, por sua vez, estão previstos, respectivamente, na Lei 1.807, de 7 de janeiro de 1953, que “dispõe sôbre operações de câmbio e dá outras providências”, e na Lei 4.131, de 3 de setembro de 1962, que “disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior e dá outras providências”.
Assim, a legislação brasileira deixa claro que as criptomoedas não podem ter natureza jurídica nem de moeda nacional nem de moeda estrangeira.
Restam outras possíveis classificações, tais quais moeda eletrônica; valor mobiliário; título de crédito; ou meros bens jurídicos. Vejamos cada uma delas na próxima aula.
Notas
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 478410. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 13 mai. 2010. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE478410.pdf. Acesso em: 9 maio 2017.
- ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.