A relação entre criptomoedas e liberdade monetária

Criptomoedas e Liberalismo Econômico

Bem-vindos ao último módulo do curso Direito da Criptomoedas. Nesta última parte do curso, vamos estudar a relação que existe entre as moedas virtuais e alguns conceitos do liberalismo econômico.

Para isso, precisaremos regressar um pouco ao módulo dois do curso, quando estudamos a criação do Bitcoin por Satoshi Nakamoto lá em 2008.

Os motivos que levaram Satoshi Nakamoto a criar o Bitcoin podem ser apenas intuídos, visto que eles não foram oficialmente expostos no artigo que deu origem à moeda virtual. 

Fernando Ulrich destaca, no entanto, o contexto histórico em que o artigo foi publicado: a crise econômica de 2008, considerada uma das maiores crises financeiras desde a Grande Depressão iniciada em 1929.

Para Ulrich, um sistema financeiro instável e com elevado nível de intervenção estatal, somado à crescente perda de privacidade financeira, foram os motivos fundamentais que impulsionaram a criação do Bitcoin (ULRICH, 2014, p. 43)1.

Embora não esteja explícito no artigo de Nakamoto, a concepção e o modo de operação do Bitcoin alinha-se completamente aos ideais do liberalismo econômico, entendido como o conjunto de princípios e teorias que defende a emancipação da economia de qualquer dogma externo a ela mesma.

O liberalismo clássico, cujo marco inicial é a publicação em 1689 de Dois Tratados sobre o Governo, de John Locke, preocupava-se primordialmente com quatro pilares:

Conforme visto no primeiro módulo do curso, sobre a origem e evolução histórica do dinheiro, foi Locke quem propôs a adoção do padrão-ouro, como uma medida para impedir que governantes alterassem arbitrariamente o valor do dinheiro.

Tratava-se, também, de uma medida política, visto que Locke foi um dos principais constitucionalistas a combater o absolutismo na Inglaterra.

A visão de Locke pressupõe que o valor do dinheiro seja um fato natural. Por essa lógica, o papel do setor financeiro seria medir esse valor, mas não o influenciar.

O Bitcoin simula essa situação ao criar uma escassez matemática inspirada na finitude do ouro, impedindo que o Estado ou qualquer outra autoridade possa alterar o valor da moeda virtual. 

Uma teoria mais completa sobre a relação entre o comportamento individual e a organização da economia foi formulada por Adam Smith em A Riqueza das Nações, livro que propôs em 1776 a existência de uma mão invisível a regular o mercado sem a necessidade de intervenção estatal. 

Segundo essa teoria, paradoxalmente, o indivíduo que age em interesse próprio promove o bem da sociedade de forma mais efetiva do que quando realmente pretende promovê-lo.

Portanto, já́ que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade.

Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até́ que ponto o está promovendo.

Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções.

Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo.

Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo.

Nunca ouvi dizer que tenham realizado grandes coisas para o país aqueles que simulam exercer o comércio visando ao bem público.

(SMITH, 1996, p. 438)2

O liberalismo clássico sofreu grande abalo ao ser apontado por críticos como uma das causas da chamada Grande Depressão em 1929.

Como visto no primeiro módulo, a crise econômica que ocorreu entre as duas guerras mundiais fez surgir, no início do século XX, a ideia de estado de bem-estar social, o que elevou os gastos do governo.

A partir de então, ideias opostas ao liberalismo começaram a ganhar força, pregando uma maior intervenção do Estado na economia, como meio de debelar a crise.

Os intervencionistas criticam o fato de o liberalismo não oferecer solução para o problema do endividamento excessivo e de não promover justiça social.

Já a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, o padrão-ouro começou a ser abandonado, até a decisão dos Estados Unidos de suspender a conversibilidade em 1971, como vimos no primeiro módulo.

A partir daí, governantes de todo o planeta sentiram-se livres para emitir moeda sem lastro.

Entre os mandatos de Franklin Roosevelt em 1933 e as ações de Richard Nixon em 1971, os Estados Unidos foram de um dólar baseado em metal precioso a um baseado exclusivamente na regulamentação do governo.

O dólar americano de hoje é meramente dinheiro por reconhecimento, sustentado pela ordem do governo e pela fé́ do povo nessa ordem e nada mais.

As notas sustentadas pelo ouro e o dólar certificado em prata há tempos deram lugar à Nota do Federal Reserve.

A frase Payable to the bearer on demand (Pagável à vista ao portador) foi substituída pela frase In God we trust (Em Deus nós confiamos).

(WEATHERFORD, 2005, p. 187)3

No entanto, mesmo o economista John Maynard Keynes, maior expoente do intervencionismo, concordava que depreciar moeda para financiar gastos do Estado sem precisar recorrer ao impopular aumento de tributos era uma medida que destruía as leis da economia:

À medida que a inflação se desenvolve, e o valor da moeda flutua de mês a mês, as relações permanentes entre credores e devedores, fundamento do capitalismo, se desorganizam até quase perderem o sentido. E o processo de aquisição de valor degenera em uma loteria de azar.

Não há dúvida de que Lênin tinha razão. Não há meio mais seguro e mais sutil de subverter a base da sociedade do que corromper a sua moeda – processo que empenha todas as forças ocultas da economia na sua destruição, de modo tal que só uma pessoa em cada milhão consegue diagnosticar.

(KEYNES, 2002, p. 163)4

Neoliberalismo ou Monetarismo

A alternância de predominância entre os pensamentos liberal e intervencionista vem ocorrendo a cada ciclo econômico, geralmente finalizado com uma crise.

A partir dos anos 1980, a questão da liberdade monetária foi enfrentada de forma mais demorada quando os princípios liberais voltaram a ganhar força, em um movimento que ficou conhecido como monetarismo ou neoliberalismo.

Essa nova fase do liberalismo econômico buscou fundamentação no trabalho que começou a ser desenvolvido no início do século XX por economistas liberais integrantes da chamada Escola Austríaca, que inclui nomes como Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, Murray Rothbard e Friedrich Hayek, este último vencedor do Prêmio Nobel de Ciências Econômicas em 1974. 

A Escola Austríaca aponta que o monopólio do controle do dinheiro pelo Estado é a principal causa de crises econômicas e picos inflacionários.

Hayek, defensor da desestatização do dinheiro e da criação de moedas privadas, chegou mesmo a propor que países da Europa e da América do Norte firmassem acordos internacionais a fim de não impor obstáculos à livre circulação de meios de troca de outras nações em seus territórios, incluindo moedas de ouro (HAYEK, 1990, p. 23)5.

Menger (1892, p. 51)6 resgata a história para lembrar que, em sua origem, o dinheiro não foi gerado pela lei e sim pela sociedade. Ele é, portanto, uma instituição social, não estatal.

Afirmação semelhante é feita por Mises, para quem o dinheiro é um fenômeno de mercado, um meio de troca escolhido pelos indivíduos para facilitar a troca de bens e cujo funcionamento “não tem nada a ver com o governo, o estado ou a violência exercida pelos governos” (GREAVES, 2010, p. 10)7.

Na próxima aula, veremos como as criptomoedas privadas podem servir como instrumento de implementação dos ideais do liberalismo econômico. Até lá!

Notas

  1. ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.
  2. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 1 v.
  3. WEATHERFORD, Jack. A História do Dinheiro. Rio de Janeiro: Campus, 2005.
  4. KEYNES, John Maynard. As Consequências Econômicas da Paz. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.
  5. HAYEK, Friedrich. Denationalisation of Money: The Argument Refined. London: The Institute of Economic Affairs, 1990.
  6. MENGER, Carl. On the Origins of Money. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2009.
  7. GREAVES, Betina. Ludwig von Mises on Money and Inflation: a synthesis of several lectures. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2010.
Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade