Bem vindos ao módulo três do curso Direito das Criptomoedas. Se nos dois primeiros módulos passeamos pela história do dinheiro e das criptomoedas, agora é hora de mergulharmos um pouco no mundo do Direito para entender como pode se dar a regulamentação jurídica das moedas virtuais.
Para isso, precisamos entender primeiro a natureza jurídica das criptomoedas no nosso ordenamento jurídico. Isso porque o Sistema Monetário, no Brasil e no mundo, é fortemente regulamentado pelo Direito.
Segundo Rothbard (2013, p. 61)1, a maior parte dos países do Ocidente baseia seu ordenamento jurídico monetário em dois pilares:
- O monopólio da emissão de moeda com leis que obrigam os cidadãos do país a aceitarem o dinheiro emitido pelo Estado como meio de pagamento (leis de curso forçado).
- A atribuição de um Banco Central relativamente independente como responsável por organizar e controlar o sistema bancário.
Curso forçado, de acordo com Marcos Cavalcante de Oliveira (2009, p. 162-163)2, pode ser entendido como o efeito liberatório atribuído por lei a uma ou mais moedas em um país ou o “atributo que o ordenamento jurídico confere à moeda de modo a fazer com que ela seja aceita como pagamento na medida do seu valor nominal definido pelo Poder Público que a emitiu”.
No Brasil, a legislação de curso forçado do real é a Lei 10.192, de 14 de fevereiro de 2001.
A intervenção do Estado no âmbito monetário, portanto, não é apenas patente, mas também legitimada pelo próprio ordenamento jurídico.
Como visto no primeiro módulo do curso Direito das Criptomoedas, a emissão de moedas pelo Estado não possui mais lastro físico, a não ser a confiança dos governos, por conta do abandono do chamado padrão-ouro, prática que começou gradualmente após a Primeira Guerra Mundial e cujo grande marco é 15 de agosto de 1971.
Nesta data, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, suspendeu qualquer conversibilidade do dólar americano em ouro (ROTHBARD, 2013, p. 87). O abandono do padrão-ouro ocorreu por força de lei nos Estados Unidos, fazendo com que outros países editassem normas semelhantes, e não por motivos puramente econômicos, como lembra Ulrich:
Apuros fiscais e má gestão da moeda conduziram inevitavelmente à abolição do padrão-ouro. É preciso frisar, no entanto, que o metal precioso não colapsou, nem mesmo falhou como padrão monetário.
O fracasso, de fato, deveu-se aos estados, descontentes com a disciplina imposta pelo padrão-ouro, pois este era o último empecilho à livre emissão de moeda, seja para financiar guerras, seja para bancar o estado de Bem-Estar Social.
O que temos hoje é um sistema monetário elástico, cuja emissão de moeda é uma mera função da vontade política embasada por teorias econômicas defeituosas.
(ULRICH, 2014, p. 102)3
O abandono do padrão-ouro no final do século XX aumentou a relação entre as disciplinas do Direito e da Economia.
Se o ouro seria substituído pelas moedas nacionais sem lastro, caberia ao governo editar normativos que regulassem essa nova forma de funcionamento do dinheiro. Ainda segundo Ulrich:
A moeda nacional (currency), assim, era separada da moeda propriamente dita, o ouro.
A moeda nacional era uma representação do metal que poderia ser convertida em ouro quando demandado pelo proprietário da cédula de papel.
Isso nada mais é do que a definição do padrão-ouro clássico; a paridade do ouro era promulgada em lei, e a moeda nacional circulava e era aceita independentemente de qualquer lei de curso forçado, pois a currency era resgatável em ouro, e os bancos centrais de fato obedeciam à lei.
Até o início da Primeira Guerra Mundial, essa era a ordem monetária do Ocidente.
O ponto a ser compreendido aqui é que, mesmo no padrão-ouro clássico em que as cédulas de banco eram, em sua maior parte, lastreadas em ouro, cada vez menos o metal circulava, sendo a maioria das trocas de mercado realizadas com cédulas de papel, a moeda nacional.
(ULRICH, 2014, p. 87)
Além da mudança nos governos, o abandono do padrão-ouro causou transformações também no setor bancário. Antes, as instituições financeiras custodiavam bens tangíveis em ouro ou outro metal precioso e emitiam para os depositantes certificados de armazenagem, que passavam a circular como se fossem o próprio bem depositado, evitando os problemas de se carregar metal precioso.
À medida que tais papéis ampliaram-se, a quantidade de transações com os bens que valiam como meio de troca diminuiu. Ainda assim, todo o papel circulante tinha lastro.
Os bancos começaram a violar os princípios gerais do Direito quando perceberam que nem todos os depositantes exigiam o resgate dos depósitos em espécie ao mesmo tempo.
Assim, passaram a operar com as chamadas reservas fracionárias. Estava criada a moeda escritural, “uma moeda que não existe materialmente senão nos livros de contabilidade do banco; existe apenas na forma escrita” (ULRICH, 2014, p. 58).
De Soto (2012)4 comunga da opinião de Ulrich de que as reservas fracionárias foram criadas infringindo os princípios gerais do Direito. De acordo com o autor:
as doutrinas jurídicas que tentaram justificar o exercício da atividade bancária baseada em um coeficiente de reserva fracionário desenvolveram-se a reboque dos acontecimentos.
Isto é, não se fundamentaram em princípios jurídicos preexistentes e em virtude dos quais se efetuaram alguns atos jurídicos.
Pelo contrário, […] a prática bancária foi desenvolvida infringindo princípios gerais do direito muito fáceis de entender e, em consequência de circunstancias especificas que favoreceram e possibilitaram essas violações (avareza dos homens, dificuldades de controle, necessidades financeiras dos governos, intervenção sistemática das autoridades e confusão decorrente do depositum confessatum, resultado da proibição canônica de juros).
Como é lógico, o exercício de uma prática tão generalizada sem fundamentação jurídica não demorou a estimular os banqueiros e os teóricos para a necessidade de encontrar uma justificação jurídica adequada.
(DE SOTO, 2012, p. 129)
Após o abandono do padrão-ouro, os Bancos Centrais ganharam discricionariedade para emitir moeda livremente, testando os resultados e aprendendo com a prática (BERNANKE, 2012)5.
Foi nesse período que os governos passaram a adotar a política monetária de taxa de juros, “em que a variável era alvo direto das ações do Banco Central, estabelecendo-a como meta, sendo o crescimento da oferta monetária mero produto da política de juros” (ULRICH, 2014, p. 76).
Com a moeda escritural, os dígitos em uma conta bancária passaram a ser substitutos de dinheiro físico. No entanto, apenas uma fração desses dígitos de fato existirá como o dinheiro físico substituído.
É o contrário do que acontece com o Bitcoin, em que a unidade monetária – o arquivo digital – é o próprio bem monetário, e não um substituto (ULRICH, 2014, p. 65).
A história, portanto, deixa claro que a moeda intangível já existia e era validada pelo Direito muito antes da concepção e da circulação das criptomoedas.
Na realidade, boa parte da circulação monetária no mundo atual é realizada por meio de arquivos digitais, sem correspondência exata com o mundo material. Países como a Suécia, inclusive, já colocaram em curso medidas para encerrar em definitivo a circulação de dinheiro em papel (WALLIN, 2016)6.
O poder estatal de emitir moeda e seus possíveis problemas
Com a instituição do papel-moeda fiduciário e de curso forçado, sem lastro, o poder do governo para inflacionar ou deflacionar uma moeda tornou-se praticamente absoluto (ROTHBARD, 2013, p. 71).
O primeiro artigo da Constituição dos Estados Unidos, em vigor desde 1789, dispõe, em sua seção oito, que o Congresso tem a exclusividade do poder de cunhar moeda e regular o valor das moedas estrangeiras.
Tal competência exclusiva não necessariamente resultou em preços sempre controlados, como é o exemplo evidente do Brasil até a adoção do Plano Real em 1994.
Ulrich (2014, p. 36) argumenta que isso ocorre porque “o poder de imprimir dinheiro é tentador demais para não ser usado”.
Assim, legitimados pelo Direito positivado, governantes acabam utilizando tal poder para financiar déficits, custear guerras ou simplesmente sustentar a máquina estatal em patamares superiores aos que seriam permitidos pelo simples uso da receita obtida com os tributos cobrados da sociedade.
Para muitos economistas, um dos resultados desta nova forma de emissão de dinheiro é a inflação, entendida como o aumento na quantidade de moeda em circulação em uma economia, tendo como consequência inevitável o surgimento de uma tendência geral de aumento em todos os preços (MISES, 2008)7.
Esse entendimento de Mises e outros economistas liberais não é consenso. Há quem defenda que inflação está relacionada a excesso de demanda sobre a oferta ou um aumento no custo de produção dos bens. Por essa lógica, a emissão de moeda geraria inflação somente quando não existe capacidade ociosa, ou seja, quando não existem muitas máquinas e trabalhadores desocupados.
Mises considera equivocado o conhecimento convencional de que inflação é o aumento de preços. Isso seria a consequência da inflação, e não a inflação em si mesma, que só poderia ser combatida se os governos parassem de emitir moeda em demasia.
Se o governo obtiver todo o seu financiamento unicamente através da taxação e, assim, parar de aumentar a quantidade de dinheiro em circulação e parar de tomar emprestado dos bancos comerciais, os preços gerais permanecerão inalterados, e não haverá necessidade de termos controles ditatoriais de preços.
Mas o governo não tem qualquer motivo para querer parar com a inflação.
Não é eleitoralmente popular para um governo coletar toda a quantia necessária para seus gastos unicamente através da taxação.
É preferível iludir o público recorrendo ao aparentemente não oneroso método de aumentar a quantidade de moeda e crédito.
Mas, não obstante, qualquer que seja o método de financiamento adotado – seja taxação, empréstimos ou inflação -, os gastos governamentais vão inevitavelmente incidir por completo sobre o público.
(MISES, 2008, p. 1)
O Brasil historicamente sofreu por muitos anos os problemas da inflação descontrolada. Na próxima aula, veremos como a legislação nacional trata a emissão de moedas e como as criptomoedas podem ser entendidas de acordo com essa legislação.
Até lá!
Notas
- ROTHBARD, Murray N. O que o governo fez com o nosso dinheiro? São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.
- OLIVEIRA, Marcos Cavalcante de. Moeda, juros e instituições financeiras. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
- ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.
- DE SOTO, Jesús Huerta. Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2012.
- BERNANKE, Ben. Monetary Policy since the Onset of the Crisis. Federal Reserve, 31 ago. 2012. Disponível em: http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/bernanke20120831a.htm. Acesso em: 28 set. 2016.
- WALLIN, Claudia. Dinheiro pode sair de circulação na Suécia até 2030. BBC Brasil, 12 de abril de 2016. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160411_sociedade_sem_dinheiro_cw_rb. Acesso em: 9 maio 2017.
- MISES, Ludwig von. A verdade sobre a inflação. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 27 mai. 2008. Disponível em: http://mises.org.br/Article.aspx?id=101. Acesso em: 17 set. 2016.