O princípio da neutralidade de rede no Marco Civil da Internet

Neutralidade de rede

Quando o Marco Civil da Internet foi elaborado, provavelmente o ponto de maior discussão foi a questão da neutralidade de rede.

A neutralidade de rede é um princípio que assegura que todas as informações e serviços disponíveis online sejam tratados igualmente pelos provedores de acesso à internet, sem discriminação ou preferência por tipo de conteúdo, origem ou destino. 

Definido desta forma, o princípio parece ser um ponto pacífico e consensual. Mas não é o caso. Há quem opine pelo fim da neutralidade de rede, argumentando que o princípio traz mais malefícios do que benefícios. 

Por isso, neste artigo veremos em detalhes:

Vamos começar conceituando o termo de forma adequada.

O que é neutralidade de rede

A neutralidade de rede é o princípio que estabelece que todos os dados na internet devem ser tratados igualmente pelos provedores de serviço de internet, sem discriminação ou preferencialidade baseada no usuário, conteúdo, site, plataforma, aplicativo ou tipo de equipamento conectado. 

Na prática, isso significa que um provedor de conexão à internet não pode privilegiar ou prejudicar o fornecimento de nenhum tipo de conteúdo.

Por exemplo, imagine que o provedor XPTO, além de oferecer conexão com a internet, também tenha pacotes de TV a cabo. 

Assim, ele resolve prejudicar a entrega de serviços de streaming, deixando de propósito os vídeos mais lentos e travando, para prejudicar a concorrência e favorecer o seu próprio serviço de TV.

Isso seria uma violação clara ao princípio da neutralidade da rede.

A discriminação por velocidade negativa é apenas um exemplo. Outras formas de violação seriam:

  • Bloqueios a determinados sites e aplicações por parte do provedor de conexão
  • Discriminação por velocidade positiva (deixar o acesso mais rápido a parceiros do provedor, por exemplo)
  • Discriminação por preço (positiva ou negativa)

Feito este panorama geral, vejamos algumas definições acadêmicas sobre o termo.

Definições acadêmicas

O termo “network neutrality” foi cunhado pelo professor Tim Wu, que argumenta em seu artigo “Network Neutrality, Broadband Discrimination” (2003), que a neutralidade de rede é essencial para preservar a inovação e a concorrência na internet. 

Wu salienta que, sem a neutralidade de rede, os provedores de conexão poderiam favorecer seus próprios serviços ou os de parceiros pagantes, prejudicando a livre concorrência e a inovação.

Na definição do professor Pedro Henrique Soares Ramos:1

“A neutralidade da rede é um princípio de arquitetura de rede que endereça aos provedores de acesso o dever de tratar os pacotes de dados que trafegam em suas redes de forma isonômica, não os discriminando em razão de seu conteúdo ou origem”.

O professor ensina que o princípio possui os seguintes elementos constitutivos:

  • Obrigação de os provedores não bloquearem nem dificultarem o acesso a sites e aplicações
  • Impedimento de cobrança diferenciada para acesso a determinados sites e aplicações
  • Manutenção de práticas transparentes e razoáveis a respeito de seus padrões de gerenciamento de tráfego

O conceito é tão importante que foi elevado pelo Marco Civil da Internet a um dos princípios que regem a disciplina do uso da internet no Brasil.

A neutralidade de rede como princípio do uso da internet no Brasil

A preservação e garantia da neutralidade de rede é um dos princípios do Marco Civil da Internet listados no art. 2º da Lei 12.965/2014.

Em seguida, no art. 9º, o Marco Civil define o conceito da seguinte forma:

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

O princípio não é absoluto, visto que a própria lei traz duas exceções à neutralidade, como se verá a seguir.

Exceções ao princípio da neutralidade de rede

O parágrafo primeiro do art. 9º traz duas exceções ao princípio da neutralidade de rede, quais sejam:

  • Requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações
  • Priorização de serviços de emergência

Nesses dois casos, pode haver discriminação ou degradação do tráfego, conforme regulamentado pelo Presidente da República, ouvidos o Comitê Gestor da Internet (Cgi.br) e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Para isso, o provedor precisa cumprir os seguintes requisitos, conforme o § 2º do art. 9º:

  • Abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil
  • Agir com proporcionalidade, transparência e isonomia
  • Informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede
  • Oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais

A regulamentação das exceções veio dois anos depois, por meio do Decreto nº 8.771/2016, que reforça que a neutralidade de rede deve garantir a preservação do caráter público e irrestrito do acesso à internet e os fundamentos, princípios e objetivos do uso da internet no País.

Exceção por requisitos técnicos

O Decreto detalha, em seu art. 5º, o que são os requisitos técnicos citados no parágrafo primeiro do art. 9º do Marco Civil. De acordo com o texto do Decreto, tais requisitos são aqueles decorrentes de:

  • Tratamento de questões de segurança de redes, tais como restrição ao envio de mensagens em massa (spam) e controle de ataques de negação de serviço
  • Tratamento de situações excepcionais de congestionamento de redes, tais como rotas alternativas em casos de interrupções da rota principal e em situações de emergência.

A fiscalização das exceções fica a cargo da Anatel, consideradas as diretrizes estabelecidas pelo Comitê Gestor da Internet.

Exceção por emergência

A degradação ou a discriminação decorrente da priorização de serviços de emergência, de acordo com o art. 8º do Decreto, somente poderá decorrer de:

  • Comunicações destinadas aos prestadores dos serviços de emergência, ou comunicação entre eles, conforme previsto na regulamentação da Anatel; ou
  • Comunicações necessárias para informar a população em situações de risco de desastre, de emergência ou de estado de calamidade pública.

Nesses dois casos, a transmissão de dados será gratuita.

Argumentos favoráveis à neutralidade

Os argumentos a favor da neutralidade, que prevaleceram nas discussões do Marco Civil, defendem que ela preserva uma internet aberta, que privilegia a inovação na camada de aplicações.

O princípio também valoriza a autonomia e escolha do usuário, favorecendo a liberdade de expressão, que é outro fundamento do Marco Civil.

Isso porque assim os usuários podem se conectar com qualquer site ou aplicação, preservando um ambiente descentralizado e participativo.

Argumentos contrários à neutralidade de rede

Algumas grandes operadoras de telecomunicação argumentam que o princípio da neutralidade de rede distorce o mercado, pois apenas elas arcam com os investimentos em infraestrutura da internet

Assim, essas empresas dizem que prestadores de Serviços de Valor Adicionado (SVA), como por exemplo os provedores de conteúdo, deveriam contribuir de maneira direta para a implantação e para a manutenção da infraestrutura física de conectividade.

Essa prática é conhecida por alguns nomes, como “pedágio na internet”, “compartilhamento de custos”, “fair share”, “network fees”, “cost sharing”, “sender pay” e outros.

A Coreia do Sul é um exemplo de país que testou, a partir de 2020, acabar com a política de neutralidade, experimentando uma versão modelo da política de compartilhamento de custos. 

Segundo estudo da Internet Society (ISOC) Global, depois do teste na Coreia os acordos voluntários entre provedores de Internet minguaram, dependências de redes internacionais cresceram e o custo de trânsito na rede em Seul ficou dez vezes maior do que em Frankfurt ou Londres.

No Brasil, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) abriu em 2023 a Tomada de Subsídios nº 13 e, em 2024, a Tomada de Subsídios nº 26, para ouvir setores sobre a possibilidade de mudanças. 

Zero Rating e a neutralidade de rede

Você já deve ter visto a propaganda de alguma operadora oferecendo pacotes de internet promocionais nos quais algumas aplicações de internet não consomem dados do plano do usuário.

No Brasil, isso é muito comum para serviços como WhatsApp ou até para algumas redes sociais.

No mercado, essa prática é conhecida como Zero Rating (Taxa Zero).

Desde que o Zero Rating começou a ser oferecido, iniciou-se um debate sobre se a prática fere o princípio da neutralidade de rede ou se está de acordo com os princípios da livre iniciativa também previsto no Marco Civil da Internet.

Essa discussão não é exclusiva do Brasil. 

Na Europa, o Body of European Regulators for Electronic Communications (BEREC) proibiu a prática do Zero Rating em 2022 por considerar que ele fere a neutralidade de rede.

O problema é que o benefício acaba privilegiando empresas maiores, dificultando a concorrência. Ele também dificulta que os usuários chequem uma possível desinformação recebida, por exemplo, no WhatsApp, quando o plano do usuário já não tem mais dados disponíveis.

Já no Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entendeu, na Nota Técnica nº 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/CADE, que o Zero Rating não gerava efeitos anticompetitivos e liberou a prática.

Conclusão

A neutralidade de rede, prevista no Marco Civil da Internet, dispõe que todos os dados na internet devem ser tratados igualmente pelos provedores de serviço de internet, sem discriminação ou preferencialidade baseada no usuário, conteúdo, site, plataforma, aplicativo ou tipo de equipamento conectado.

Embora existam exceções como manutenção técnica e situações de emergência, a maioria dos setores defendem que a neutralidade é benéfica para a manutenção de uma internet livre e inovadora.

Apesar disso, há argumentos contrários, especialmente vindo de grandes operadoras de telecomunicações, que defendem o compartilhamento de custos com prestadores de Serviços de Valor Adicionado.

No Brasil, segue valendo o disposto no Marco Civil da Internet, que dispõe que, em regra, o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

Isso não impede que operadoras privilegiem algumas aplicações de internet e não cobrem do usuário o acesso a elas, na prática conhecida como Zero Rating (vedada na Europa, mas permitida no Brasil).

Foto: Pixabay

Notas

  1. RAMOS, Pedro Henrique Soares. Uma questão de escolhas: o debate sobre a regulação da neutralidade da rede no Marco Civil da internet, CONPEDI, 22., 2013. Anais.
Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade