Teoria Não Ortodoxa: O dinheiro como sistema de contas de crédito e compensação

Teoria não ortodoxa do dinheiro

Na aula anterior do curso Direito das Criptomoedas, vimos que a mais aceita teoria sobre a origem do dinheiro é aquela que diz que o dinheiro surgiu como uma forma de tornar o escambo mais eficiente, elegendo-se um meio de troca universalmente aceito dentro de um grupo social.

Alguns autores, entretanto, criticam essa Teoria Monetária Convencional, alegando não haver evidência da evolução do escambo comercial para o dinheiro e afirmando que a teoria está errada.

Para esses autores, o dinheiro é o sistema de contas de crédito e compensação que o bem escolhido como meio de troca ajuda a controlar.

Thomas Smith (1832, p. 11)1 advoga que, mesmo nos exemplos de uso de concha, sal ou bacalhau apresentados por Adam Smith, os vendedores registravam créditos em seus livros e os compradores, dívidas. Apenas a diferença líquida era paga em alguma mercadoria.

O economista Alfred Mitchell-Innes resume o problema da seguinte forma:

Uma breve reflexão mostra que uma mercadoria básica não poderia ser usada como dinheiro, pois ex hypothesi o meio de troca é igualmente recebível por todos os membros da comunidade. Assim, se os pescadores pagassem em bacalhau pelos seus suprimentos, os negociantes também teriam de pagar pelo bacalhau com bacalhau, um evidente absurdo.

(MITCHELL-INNES, 1913, p. 1)

Por essa visão não ortodoxa, a moeda não é, por si mesma, dinheiro. O dinheiro seria “o sistema de contas de crédito e compensação representado pela moeda” (MARTIN, 2016, pos. 154)2.

Como veremos mais adiante no curso, a base das criptomoedas é justamente um sistema de contas de crédito e compensação.

John Maynard Keynes

Keynes e o caso da ilha de Yap

A visão não convencional sobre a origem do dinheiro apoia-se no trabalho do famoso economista John Maynard Keynes (1915)3, que a explica a partir do sistema monetário encontrado na ilha de Yap (também conhecida como Uap ou Wa′ab), um dos quatro estados que fazem parte dos Estados Federados da Micronésia, na Oceania.

Keynes tomou contato com a história de Yap ao receber a incumbência de resenhar o livro The Island of Stone Money, do antropólogo William Henry Furness III, para o Economic Journal, em 1910 (MARTIN, 2016, pos. 115). 

O antropólogo visitou a ilha em 1903 e descreveu o sistema monetário de Yap, cujo dinheiro chamava-se fei ou rai e consistia de rodas de pedra grandes, sólidas e espessas, cujo diâmetro vai de um a doze pés, tendo ao centro um buraco cuja dimensão varia conforme o diâmetro da pedra, dentro do qual se pode inserir uma trave, comprida e forte o suficiente para suportar seu peso e facilitar seu transporte (FURNESS, 1910, p. 93)4.

Pedras Rai ou Fei na ilha de Yap

Furness relata que, nas transações realizadas em Yap, assumiam-se dívidas que se anulavam umas às outras. Não era comum a troca física de fei, até quando se considerava que uma dívida em aberto devesse ser quitada.

Outra característica notável dessa moeda de pedra, que também é um notável tributo à honestidade de Uap, é que seu proprietário não precisa reduzi-la a uma posse. Depois de concluir uma negociação cujo valor é elevado demais para que um fei seja transportado de forma conveniente, seu novo proprietário se contenta em aceitar o mero reconhecimento da propriedade, e, sem uma marca sequer que indique a troca de propriedade, a moeda permanece sem ser incomodada nas instalações de seu proprietário anterior.

(FURNESS, 1910, p. 96)

O antropólogo compara o fato de o fei, mesmo fora da posse do proprietário, representar riqueza potencial tanto quanto “dólares de prata guardados no Tesouro em Washington, que nunca vemos ou tocamos, mas com os quais fazemos negócios por força de um certificado impresso atestando que lá se encontram” (FURNESS, 1910, p. 97-98).

O fei não era, portanto, o meio de troca, mas apenas um símbolo que registrava créditos e débitos.


Keynes (1915) afirma que a história do sistema monetário de Yap mostra ideias a respeito de moeda que são mais filosóficas que as de qualquer outro país.

Para os que não enxergam racionalidade no sistema monetário de Yap, Milton Friedman (1991)5 questiona se seria mesmo mais racional ver como manifestação de riqueza metais desenterrados do solo profundo, refinados e transportados apenas para serem novamente enterrados em sofisticados cofres. Ele destaca que, em qualquer dos dois modelos, o sistema monetário tem que ter como base a confiança.

O que os dois exemplos – e numerosos outros que poderiam ser listados – ilustram é o quão importante é o “mito”, a crença inquestionada, nos assuntos monetários. Nosso próprio dinheiro, o dinheiro com o qual crescemos, o sistema sob o qual ele é controlado, todos parecem “reais” e “racionais” para nós. O dinheiro de outros países muitas vezes parecem-nos como papel ou metal sem valor, mesmo quando o poder de compra de suas unidades individuais é alto.

(FRIEDMAN, 1991, p. 5)

Em resumo, a teoria não ortodoxa vê “o dinheiro como um tipo especial de crédito, a troca monetária como a compensação de créditos e as moedas como meros símbolos de uma relação de crédito subjacente” (MARTIN, 2016, pos. 278).

Neste sentido, uma unidade monetária, como um dólar ou um real, seria uma unidade de medida de valor econômico. A moeda não seria algo físico, mas sim uma abstração, visto que o conceito de valor econômico varia de acordo com a realidade social.

O dinheiro não é o valor pelo qual os bens são trocados, mas o valor com os quais eles são trocados: a utilidade do dinheiro é comprar bens e a prata enquanto dinheiro não tem outra utilidade.

(LAW, 1705, p. 188)6

Pelo ponto de vista da teoria não ortodoxa, a origem remota do dinheiro pode ser encontrada na Mesopotâmia cerca de três mil anos antes de Cristo. Mas essa história será o tema da nossa próxima aula. Até lá!

Notas

  1. SMITH, Thomas. An Essay on Currency and Banking. Filadélfia: Jesper Harding, 1832.
  2. MARTIN, Felix. Dinheiro: uma biografia não autorizada. Kindle edition. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2016.
  3. KEYNES, John Maynard. The Island of Stone Money. Economic Journal, v. 25, n. 98, 1915.
  4. FURNESS, William. The Island of Stone Money: UAP of the Carolines. Filadélfia: J. B. Lippincott, 1910. Disponível em: https://archive.org/details/islandofstonemon009573mbp. Acesso em: 15 out. 2016.
  5. FRIEDMAN, Milton. The Island of Stone Money. Hoover Institution Working Papers in Economics. Stanford: The Hoover Institution, 1991. Disponível em: https://archive.org/stream/IslandOfStoneMoney/island%20of%20stone%20money_djvu.txt. Acesso em: 15 out. 2016.
  6. LAW, John. Money and Trade Considered, with a proposal for supplying the nation with money. Glasgow: R. & A. Foulis, 1705. Disponível em:https://ia801406.us.archive.org/2/items/moneytradeconsid00lawj/moneytradeconsid00lawj.pdf. Acesso em: 9 maio 2017.
Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade