Introdução ao Estudo do Direito, de Tércio Sampaio Ferraz Júnior

Introdução ao Estudo do Direito, de Tércio Sampaio Ferraz Júnior

“Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação”, de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, foi o primeiro livro que me indicaram ao entrar na graduação em Direito.

Embora seja uma introdução voltada para estudantes do primeiro ano, o livro oferece uma abordagem profunda e crítica sobre os fundamentos do Direito, destacando a importância de entender não apenas as normas jurídicas, mas também as estruturas de poder e as dinâmicas sociais que as sustentam.

Nesta resenha, busco explorar os principais aspectos desta obra, com base nas minhas anotações, evidenciando sua relevância para a formação acadêmica e profissional dos estudantes de Direito.

Introdução ao Estudo do Direito: Técnica e Dogmática

Ferraz Júnior inicia sua obra distinguindo claramente o Direito em suas dimensões técnica, zetética e dogmática.

A técnica jurídica, segundo o autor, é fundamental para a aplicação e interpretação das normas, porém, o enfoque dogmático predomina no ensino do Direito nas faculdades.

Esta ênfase na dogmática, que Ferraz Júnior define como a sistematização do ordenamento e sua interpretação, é tratada com uma visão crítica, destacando as limitações desse enfoque para a compreensão plena do fenômeno jurídico.

O autor apresenta a dogmática como um campo de estudo que privilegia as premissas estabelecidas, muitas vezes de forma arbitrária, em detrimento da pesquisa independente.

Por isso, ele evidencia em vários trechos as distinções entre zetética e dogmática:

Zetética vem de zetein, que significa perquirir, dogmática vem de dokein, que significa ensinar, doutrinar. (…)

O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo-as em dúvida.

Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. (…)

O enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar a ação. (…)

Uma investigação zetética tem como ponto de partida uma evidência, que pode ser frágil ou plena. E nisso ela se distingue de uma investigação dogmática. (…)

A zetética parte de evidências, a dogmática parte de dogmas. Propomos, pois, que uma premissa é evidente quando está relacionada a uma verdade; é dogmática, quando relacionada a uma dúvida que, não podendo ser substituída por uma evidência, exige uma decisão.

Esta crítica é essencial para os estudantes, pois os incentiva a questionar as bases sobre as quais se constrói o conhecimento jurídico, promovendo uma visão mais ampla e crítica do Direito.

A Dualidade do Direito: Filosofia da Obediência e da Revolta

Outro ponto importante da obra é a análise da dualidade inerente ao Direito, que Ferraz Júnior descreve como contendo tanto a filosofia da obediência quanto a da revolta.

O Direito, segundo ele, atua como um mecanismo de proteção contra o poder arbitrário e, ao mesmo tempo, serve como instrumento de controle e dominação.

O direito contém, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, servindo para expressar e produzir a aceitação do status quo, da situação existente, mas aparecendo também como sustentação moral da indignação e da rebelião. (…)

O direito, assim, de um lado, protege-nos do poder arbitrário, exercido à margem de toda regulamentação, salva-nos da maioria caótica e do tirano ditatorial, dá a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os desfavorecidos.

Por outro lado, é também um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação que, por sua complexidade, é acessível apenas a uns poucos especialistas.

Esta perspectiva oferece uma compreensão mais rica e complexa do papel do Direito na sociedade, indo além da simples aplicação das normas.

Ferraz Júnior destaca que o Direito (especialmente na era do Direito Digital), ao mesmo tempo que protege os desfavorecidos, também pode ser manipulado para frustrar suas aspirações.

Essa ambiguidade é uma característica fundamental do fenômeno jurídico, que os estudantes de Direito devem compreender para exercerem sua futura profissão com consciência crítica e ética.

Introdução ao Estudo do Direito na Sociedade Moderna

Em sua obra, Tércio Sampaio Ferraz Júnior não se limita a uma análise estática do Direito, mas explora sua transformação ao longo do tempo, especialmente na sociedade moderna.

Ele argumenta que o Direito se tornou, em muitos aspectos, um objeto de consumo, assim como a ciência e a arte. Este fenômeno é analisado criticamente pelo autor, que sugere que a instrumentalização e a uniformização do Direito sob a forma estatal podem levar a uma implosão futura, dando lugar a manifestações jurídicas mais espontâneas e locais.

O jurista da era moderna, ao construir os sistemas normativos, passa a servir aos seguintes propósitos, que são também seus princípios: a teoria instaura-se para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível.

Por meio de leis, fundamentam-se e regulam-se ordens jurídicas que devem ser sancionadas, o que dá ao direito um sentido instrumental, que deve ser captado como tal.

As leis têm um caráter formal e genérico, que garante a liberdade dos cidadãos no sentido de disponibilidade.

Nesses termos, a teoria jurídica estabelece uma oposição entre os sistemas formais do direito e a própria ordem vital, possibilitando um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítima da utilidade privada.

Essa visão prospectiva é particularmente relevante para estudantes de Direito, pois os prepara para pensar sobre o futuro do Direito em um mundo em constante mudança.

Ferraz Júnior sugere que o Direito pode vir a se tornar mais diversificado e adaptado às realidades locais e às necessidades específicas dos grupos sociais, o que contrasta com a visão tradicional de um Direito homogêneo e centralizado.

A Importância da Hermenêutica e da Decisão Jurídica

Outro aspecto central da obra é a ênfase na hermenêutica jurídica e no processo de decisão.

Hermes, na mitologia grega, era um intermediário entre os deuses e os homens, de onde vem a palavra hermenêutica. A dogmática hermenêutica, já dissemos, faz a lei falar.

Ferraz Júnior destaca que o Direito não pode ser compreendido sem uma análise profunda dos processos interpretativos que o sustentam.

Ele explora as diferentes técnicas de interpretação, como a gramatical, lógica, sistemática e histórica, e ressalta a importância de entender o Direito como um sistema de normas que precisam ser interpretadas e aplicadas de acordo com os contextos específicos.

O autor também aborda a questão da decisão jurídica, destacando o papel do jurista em garantir a decidibilidade dos conflitos com o mínimo de perturbação social possível.

Esta análise é crucial para os estudantes, pois os ajuda a compreender que o Direito não é apenas um conjunto de regras a ser aplicado mecanicamente, mas um campo de atuação que exige discernimento, interpretação e uma profunda compreensão das consequências das decisões jurídicas.

Direito como Instrumento de Dominação

Um dos pontos mais intrigantes e provocativos da obra de Ferraz Júnior é sua análise do Direito como instrumento de dominação.

Ele argumenta que, embora o Direito proteja os cidadãos contra o poder arbitrário, ele também pode ser utilizado como um meio de perpetuar a dominação social.

Esta visão crítica é fundamental para que os estudantes de Direito compreendam as complexas relações de poder envolvidas na criação e aplicação das normas jurídicas.

Ferraz Júnior sugere que o Direito, em sua forma moderna, muitas vezes reflete e perpetua as desigualdades sociais, em vez de corrigi-las.

Essa crítica profunda deve servir como um alerta para os futuros juristas, incentivando-os a refletir sobre o papel que o Direito desempenha na sociedade e como ele pode ser utilizado tanto para a manutenção do status quo quanto para a promoção da justiça social.

Argumentação Jurídica

Já nos últimos capítulos, “Introdução ao Estudo do Direito” traz um interessante estudo sobre técnicas de argumentação jurídica, ensinando aos estudantes conceitos básicos de argumentos comumente utilizados, tais quais:

  • Argumento ab absurdo ou reductio ad absurdum: a palavra absurdo, em seu sentido comum, significa algo inconcebível, impossível. A própria indeterminação de expressões do tipo “inconcebível’’ e “impossível’’ mostra a dificuldade de se determinar com rigor o chamado argumento pelo absurdo.
  • Argumento ab auctoritate Argumento típico da retórica, foi de todos, talvez, o mais atacado no correr dos tempos. Trata-se de um argumento que procura provar uma tese qualquer, utilizando-se dos atos ou das opiniões de uma pessoa ou de um grupo que a apóiam. O argumento de autoridade funda-se, sobretudo, no prestígio da pessoa ou do grupo invocado. O argumento de autoridade é tipicamente um topos de qualidade, pois é o prestígio pessoal do invocado que garante a tese sustentada. Vez ou outra, porém, ele toma a forma de um topos de quantidade, quando é o grande número das opiniões que favorece a tese defendida.
  • Argumento a contrario sensu: Consiste, em termos simples, em concluir de uma proposição admissível, pela proposição que lhe é oposta. Por exemplo: se o legislador especificou taxativamente os casos de incidência do tributo, a contrario sensu os demais casos não estão abrangidos. Logicamente, ele é insustentável, pois uma consequência verdadeira pode resultar de um princípio falso, bem como duas hipóteses contrárias podem ter a mesma consequência. Seu estatuto de validade não é, pois, lógico, mas retórico.
  • Argumento ad hominem: Conhecido também como ex concessis, corresponde a um argumento que limita a validade de uma tese ao que cada qual está disposto a conceder, aos valores que se reconhecem, aos fatos com os quais se está de acordo. Não se confunde com o argumento ad personam que consiste em desqualificar o adversário. O argumento ad hominem, muitas vezes, incorre em petição de princípios, quando o argumentador restringe o que está disposto a conceder exatamente pelas conclusões a que deseja chegar, postulando, assim, o que quer provar (por exemplo, admitido que a lei pune o ato x, então o ato x é ilegal).
  • Argumento ad rem: Trata-se de argumento que, em oposição ao ad hominem, reputa-se válido para qualquer pessoa. Chama-se por isso também argumento ad humanitatem. O argumento ad rem concerne, nesses termos, às coisas mesmas e à verdade enquanto aceitas pressupostamente por todos, pelo auditório universal. Entre a série de argumentos ad rem, incluem-se, por exemplo: o argumento a causa que deposita a validade da tese na demonstração das causas do fenômeno; o argumento a loco que privilegia ou enfraquece os comportamentos conforme o lugar onde ocorreram (veja-se a noção de agravantes criminais conforme o lugar do crime); o argumento a tempore que faz o mesmo que o anterior, em relação ao tempo; o argumento a modo que privilegia o aspecto ou modo como foi realizada uma ação qualquer, para atribuir-lhe maior ou menor peso na argumentação.
  • Argumento a maiori ad minus: Trata-se de argumento por meio do qual, na argumentação jurídica, passamos da validade de uma disposição mais extensa para a validade de outra menos extensa.
  • Argumento a minori ad maius: Trata-se de argumento da mesma família do argumento a fortiori e do a maiori ad minus. Nesse caso, passamos da validade de uma disposição menos extensa para outra mais extensa.
  • Argumento a pari ou a simile: A expressão é de origem jurídica e refere-se ao argumento que relaciona dois casos entre si, considerados semelhantes, concluindo que, se, para ambos, vale a mesma hipótese, devem valer também as mesmas consequências.
  • Argumento a posteriori: Refere-se a um raciocínio que remonta das consequências aos princípios, daquilo que é condicionado ao que condiciona. Em Santo Tomás está definido como demonstratio per effectum (Summa Theologica I, 2, 2c). O argumento é, por isso, conhecido também sob a designação ab affectis. O tipo de argumentação que se propõe fundar a validade de uma proposição pela enumeração de julgados da jurisprudência (argumentum a judicato) é um típico exemplo do raciocínio a posteriori.
  • Argumento a priori: É o oposto do anterior e consiste em concluir dos princípios para as consequências, das causas para os efeitos, do condicionante para o condicionado. Chama-se também argumento a causa.
  • Argumento silogístico ou entimema: O entimema é também chamado de epiquerema (a denominação entimema é de Aristóteles, epiquerema é de Quintiliano) e corresponde ao silogismo imperfeito ou silogismo retórico.
  • Argumento exemplar ou exempla: Os exemplos também na retórica clássica eram estudados separadamente, à parte dos argumentos, como a forma retórica correspondente à indução lógica.

Conclusão: Introdução ao Estudo do Direito

“Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação” de Tércio Sampaio Ferraz Júnior é uma obra indispensável para os estudantes de Direito, especialmente aqueles que estão começando sua jornada acadêmica.

O livro oferece uma visão crítica e abrangente do Direito, abordando tanto seus aspectos técnicos e dogmáticos quanto suas funções sociais e políticas.

Através de uma análise profunda, Ferraz Júnior desafia os leitores a questionarem as bases do conhecimento jurídico e a refletirem sobre o papel do Direito na sociedade contemporânea. Ele não se contenta em apresentar o Direito como um conjunto de normas, mas explora suas interações com o poder, a moral e a justiça.

Recomendo fortemente esta obra a todos os estudantes de Direito, pois ela não apenas fornece uma base sólida para o estudo jurídico, mas também inspira uma reflexão crítica e ética sobre a prática do Direito.

Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade