Os 7 fundamentos da LGPD para disciplinar a proteção de dados pessoais

Fundamentos da LGPD

Os fundamentos da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) são um grupo de sete incisos que devem nortear a aplicação não apenas da Lei 13.709/2018, mas também de interpretações acerca da disciplina da proteção de dados pessoais como um todo.

Os sete fundamentos da LGPD podem ser encontrados no art. 2º da lei, sendo eles:

A compreensão dos fundamentos da LGPD é crucial para garantir o cumprimento da lei, proteger os direitos dos cidadãos e promover um ambiente digital seguro e ético. 

Neste artigo, exploraremos detalhadamente cada um dos sete fundamentos da LGPD, estudando sua relevância e impacto nas relações sociais, econômicas e tecnológicas.

Comecemos pelo respeito à privacidade.

1. O respeito à privacidade como um dos fundamentos da LGPD

Como vimos em artigos anteriores, privacidade é um conceito difícil de definir.

Um grande marco sobre as discussões acerca do respeito à privacidade é a publicação, em 1890, do artigo The Right to Privacy, de Samuel Warren e Louis Brandeis, no qual o direito à privacidade é definido como o direito de ser deixado sozinho.

Ainda assim, o artigo não traz uma definição exata do que seria privacidade.

Daniel Solove, no artigo “I’ve Got Nothing to Hide” and Other Misunderstandings of Privacy, cita vários autores para contextualizar a dificuldade de definir o que é privacidade.

No artigo, lemos que, de acordo com Artur Miller, a privacidade é “exasperadamente vaga e evanescente”. Hyman Gross diz que “O conceito de privacidade está infectado com perniciosas ambiguidades.” Colin Bennett observa da mesma forma: “As tentativas de definir o conceito de privacidade geralmente não teve qualquer sucesso.” “Talvez a coisa mais surpreendente sobre o direito de privacidade”, observa Judith Jarvis Thomson, “é que ninguém parece ter qualquer ideia muito clara do que seja.”

No livro Privacy in Context, a filósofa Helen Nissenbaum desenvolve a Teoria da Privacidade Contextual. A teoria diz que o conceito de privacidade, por ser subjetivo e fluido, depende muito do contexto em que a pessoa está inserida. É o que o próprio Daniel Solove chama, na sua obra Understanding Privacy, de “conceito camaleão”.

O jurista Danilo Doneda, que foi um dos mentores do anteprojeto que resultou na LGPD, escreve no seu Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais que privacidade é um conceito praticamente impossível de se definir.

Apenas no final da primeira parte do livro, depois de fazer um detalhado estudo sobre a evolução do conceito de privacidade, Doneda traz uma definição objetiva, retirada da obra de Stefano Rodotà:

“Privacidade é o direito de manter o controle sobre as próprias informações e de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada”.

Stefano Rodotà, Tecnologie e diritti

Ao mencionar “esfera privada”, o conceito de Rodotà liga-se à Teoria das Esferas ou Teoria dos Círculos Concêntricos desenvolvida em 1957 por Heinrich Hubmann para representar os diferentes graus de manifestação do sentimento da privacidade:

  • O círculo do segredo
  • O círculo da intimidade ou da confidência
  • O círculo privado

Assim, podemos concluir que o primeiro dos fundamentos da LGPD impõe que, na aplicação e interpretação da lei, a proteção de dados pessoais guie-se pelo respeito ao círculo privado de cada pessoa, que varia de acordo com o contexto e precisa ser analisado caso a caso.

2. A autodeterminação informativa como um dos fundamentos da LGPD

O segundo dos fundamentos da LGPD é o direito que as pessoas têm de decidirem por si próprias quando e dentro de quais limites seus dados podem ser utilizados.

Na lição de Leonardo Martins:

Autodeterminação informativa é o direito que cabe ao titular de controlar e de proteger os próprios dados pessoais, tendo em vista a moderna tecnologia e processamento de informação.

MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevidéu: Fundação Kontad Adenauer, 2005, páginas 233 a 235

Segundo Danilo Doneda, o conceito aparece inicialmente na década de 1970 no livro Privacy and Freedom, de Alan Westin.

A autodeterminação informativa ganhou notoriedade, entretanto, em uma sentença da Corte Constitucional da República Federal da Alemanha relativa a um censo realizado no país em 1982, que pretendia coletar dados pessoais de maneira excessiva.

Este fundamento permite a liberdade e a autonomia dos indivíduos no ambiente digital.

Para tanto, é fundamental que as organizações forneçam aos titulares informações claras, completas e acessíveis sobre como dados pessoais são utilizados, incluindo a finalidade do tratamento, os tipos de dados coletados, os direitos dos titulares em relação aos seus dados, os prazos de retenção das informações, entre outros aspectos relevantes.

3. A liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião

A Constituição Federal dispõe, em seu art. 5º, inciso IV, que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.

Liberdade de expressão pode ser entendida como o direito de comunicar, receber e buscar informações e ideias de todos os tipos. 

Sendo um dos fundamentos da LGPD e também do Marco Civil da Internet, a liberdade de expressão não pode ser entendida como um direito absoluto ou superior a outros.

Por isso, condutas criminosas como racismo, homofobia e outros tipos de discursos de ódio estão protegidos pelo manto da liberdade de expressão na internet.

O direito à informação também pode ser encontrado na Constituição, especialmente nos seguintes incisos do art. 5o:

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

Já a liberdade de comunicação pode ser resumida no art. 220 da Carta Magna, com seus dosi primeiros parágrafos, que dispõem o seguinte:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

O tratamento de dados pessoais deve permitir que as pessoas estejam informadas sobre como os seus dados são utilizados, tendo liberdade para se expressar, para se comunicar e para emitir opiniões mais embasadas.

4. A inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem

Como vimos, a Teoria das Esferas de Hubmann diz que é possível representar os diferentes graus de manifestação do sentimento da privacidade na esfera do segredo; na esfera da intimidade/confidência; e na esfera privada.

O quarto dos fundamentos da LGPD protege, inicialmente, as esferas mais restritas, da intimidade e do segredo, que dizem respeito a tudo o que a pessoa não quer compartilhar, ou que quer compartilhar apenas com poucas pessoas, geralmente de um relacionamento bastante próximo.

Além disso, busca-se proteger a honra e a imagem, garantindo que suas dados pessoais não sejam utilizados de forma prejudicial, difamatória ou invasiva.

Para cumprir este fundamento, as organizações devem adotar medidas rigorosas para evitar o acesso não autorizado aos dados pessoais, bem como para garantir que o uso dessas informações seja estritamente necessário e proporcional aos objetivos estabelecidos. 

5. O desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação

Quando a lei de proteção de dados ainda estava em tramitação, era forte o debate sobre a possibilidade de o novo diploma travar o desenvolvimento tecnológico e a inovação no país.

Por isso, o quinto dos fundamentos da LGPD aborda justamente a relação entre o desenvolvimento econômico, tecnológico e a inovação com a proteção dos dados pessoais. 

Este princípio reconhece a importância do progresso tecnológico e do desenvolvimento econômico para a sociedade, ao mesmo tempo em que ressalta a necessidade de proteger a privacidade e os direitos individuais dos titulares de dados.

O objetivo é obter um equilíbrio, ou seja, incentivar o uso responsável e ético dos dados pessoais para promover a inovação e o desenvolvimento de novas tecnologias, mas sem comprometer a segurança ou a privacidade das informações. 

Isso significa que as organizações devem adotar medidas adequadas de segurança da informação, governança de dados e compliance para garantir a proteção dos dados pessoais, mesmo durante processos de inovação e desenvolvimento tecnológico.

6. A livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor

Complementar ao anterior, o sexto dos fundamentos da LGPD faz com que a proteção de dados pessoais esteja também alinhada com a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor.

Vale ressaltar que este exato fundamento é listado também como um dos fundamentos do Marco Civil da Internet, mostrando a complementaridade entre as duas leis.

A livre iniciativa é um princípio geral da atividade econômica no Brasil, expresso no art. 170 da Constituição Federal, que entre seus incisos também lista a livre concorrência e a defesa do consumidor.

A LGPD estabelece que as empresas devem competir de forma justa e transparente, respeitando não só as regras tradicionais de mercado, mas também as leis de proteção de dados. 

Isso significa que práticas antiéticas, como o uso indevido de informações pessoais para obter vantagens competitivas, são proibidas e passíveis de sanções legais.

Além disso, a LGPD também busca proteger os direitos dos consumidores, garantindo que eles tenham acesso a informações claras e transparentes sobre como suas informações serão utilizadas pelas empresas durante e após uma relação de consumo.

Vale lembrar que o Código de Defesa do Consumidor, sobretudo em seus arts. 42 e 43, foi uma das primeiras leis brasileiras a tratar da proteção de dados pessoais, dedicando – 28 anos antes da promulgação da LGPD – toda uma seção para dispor sobre bancos de dados e cadastros de consumidores.

7. Os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais

O último dos fundamentos da LGPD é também o maior deles, envolvendo direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania.

Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de cor, nacionalidade, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, religião, idade, status social, entre outras características. 

Esses direitos são considerados universais, inalienáveis, indivisíveis e interdependentes, ou seja, aplicam-se a todas as pessoas e não podem ser retirados, divididos ou separados uns dos outros.

Os direitos humanos abrangem uma ampla gama de direitos e liberdades fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à dignidade, à não discriminação, à liberdade de expressão, à liberdade de pensamento, à privacidade, ao trabalho digno, à educação, à saúde, entre outros. 

Esses direitos são garantidos por instrumentos legais internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tratados internacionais de direitos humanos e a própria Constituição Federal.

Livre desenvolvimento da personalidade: entre os objetivos e os fundamentos da LGPD

Como falamos no artigo sobre o principal objetivo da LGPD, o livre desenvolvimento da personalidade é uma das metas citadas no primeiro artigo da lei.

A citada Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe, em seu art. 22, que todo ser humano tem direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, nos seguintes termos:

Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Embora a Constituição Federal não faça menção expressa ao livre desenvolvimento da personalidade, entende-se que este é um direito fundamental garantido no Brasil, por força do § 2º do art. 5º que dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

O direito ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural reconhece que cada indivíduo possui uma identidade única, composta por características, valores, crenças e escolhas que moldam sua personalidade e direcionam suas ações.

No contexto da LGPD, esse direito garante que as pessoas tenham o poder de controlar seus próprios dados para determinar aspectos essenciais de suas vidas, como a forma como se expressam, se comportam, se relacionam e tomam decisões.

Dignidade como parte dos fundamentos da LGPD

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental da filosofia e do direito que reconhece o valor intrínseco de cada indivíduo, independentemente de suas características. 

Esse princípio afirma que todas as pessoas têm direito a serem tratadas com respeito, igualdade e dignidade, sem discriminação ou tratamento desumano, seja no âmbito público ou privado.

A dignidade implica que cada ser humano possui uma essência única e um valor inalienável, o que significa que nenhum indivíduo pode ser considerado inferior ou privado de seus direitos básicos em função de características pessoais, opiniões ou condições.

A dignidade da pessoa humana está intimamente ligada aos direitos fundamentais e à proteção dos direitos humanos, por isso todos aparecem em conjunto no último dos fundamentos da LGPD.

Exercício da Cidadania

Por fim, o exercício da cidadania refere-se à participação ativa e responsável das pessoas na vida política, social e comunitária de uma sociedade. 

Ele envolve o cumprimento dos deveres e o exercício dos direitos civis, políticos e sociais garantidos pela legislação e pelos princípios democráticos.

No contexto da LGPD, o tratamento adequado de dados pessoais permite que os titulares possam exercer seus direitos e deveres de cidadãos da melhor forma possível, com alguma garantia de que os seus dados não estão sendo utilizados para tolher sua participação política e social.

Conclusão: os fundamentos da LGPD

Neste texto, vimos que, segundo o art. 2º da Lei 13.709/2018, a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

  • O respeito à privacidade
  • A autodeterminação informativa
  • A liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião
  • A inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem
  • O desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação
  • A livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor
  • Os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais

Ao explorarmos os sete fundamentos da LGPD, temos uma ideia da complexidade e da importância da proteção dos dados pessoais, pois cada um deles reflete valores que orientam o tratamento ético, responsável e transparente dos dados pessoais.

Listando fundamentos logo no início, a LGPD mostra que não se limita a uma legislação apenas prática, mas representa um compromisso com a proteção dos direitos individuais, a promoção da transparência e da confiança nas relações digitais e o estímulo ao desenvolvimento tecnológico sustentável e ético, partindo de dispositivos inicialmente mais principiológicos para depois chegar aos aspectos mais práticos. 

Ao integrarmos esses fundamentos, contribuímos para a construção de um ambiente digital mais seguro, respeitoso e inclusivo para todos.

Referências

BIONI, Bruno. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª ed. São Paulo: Editora Forense, 2019.

DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 29 abr. 2024.

WARREN, Samuel D. BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review. Vol. IV. December 15, 1890. No. 5.

Foto por Marek Levak

Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade