O principal objetivo da LGPD não é a proteção de dados pessoais

Principal objetivo da LGPD

Ao lermos na ementa da Lei 13.709/2018 que ela se chama Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, automaticamente pensamos que o principal objetivo da LGPD é proteger dados pessoais.

Isso, porém, é um equívoco.

O principal objetivo da LGPD, como a própria lei deixa claro, é proteger as pessoas.

Neste artigo, vamos compreender melhor sobre o principal objetivo da LGPD, entendendo em detalhes:

Vamos começar esclarecendo a confusão do senso comum sobre o principal objetivo da LGPD.

Por que o principal objetivo da LGPD não é proteger dados pessoais

Muito embora a Lei 13.709/2018 tenha a alcunha de Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, seu art. 1º deixa claro que o principal objetivo da LGPD é proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Parágrafo único. As normas gerais contidas nesta Lei são de interesse nacional e devem ser observadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

O primeiro artigo de qualquer lei, de acordo com o disposto na Lei Complementar 95/1998 (que fala sobre elaboração, redação, alteração e consolidação das leis), deve indicar o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação.

No caso da LGPD, o objeto é o tratamento de dados pessoais, como se lê no inicio do art. 1º. Já o âmbito de aplicação está no parágrafo único, que a caracteriza como uma lei nacional (aplicável a União, Estados, Distrito Federal e Municípios).

O artigo, no entanto, vai além do disposto na Lei Complementar 95/1998 e dispõe também sobre o principal objetivo da LGPD, qual seja:

  • Proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade 
  • Proteger o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural

Mas e a proteção dos dados pessoais?

Dados pessoais não precisam ser protegidos; pessoas sim

Danilo Doneda, jurista que foi o principal mentor do anteprojeto que resultou na LGPD, sempre defendeu um caráter mais humanista das normas do setor de proteção de dados pessoais.

Dizia ele que o trabalho no setor nunca deveria perder de vista o objetivo final, que seria permitir que as pessoas tivessem controles e garantias sobre os seus dados para o pleno exercício de direitos fundamentais, como a liberdade e a privacidade.

Isso fica claro na prática cotidiana, quando o acesso a produtos e serviços, inclusive públicos, depende do adequado tratamento de dados pessoais.

Por exemplo, quando um acesso a um programa de distribuição de renda é negado por alguma falha no cadastro, não são os dados que passam necessidade. São as pessoas.

Quando uma concessão de crédito é negada por algum algoritmo opaco que não sabe explicar as razões do veto, não são os dados que ficam sem dinheiro para comprar ou investir. São as pessoas.

Quando um fraudador se apossa de informações vazadas de algum banco de dados, não são os dados pessoais que sofrem as consequências. São as pessoas.

Por isso, o principal objetivo da LGPD não é proteger dados pessoais e sim as pessoas. Ou melhor, os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade

Definir o que é liberdade é algo tão difícil quanto desnecessário.

A melhor definição que se pode citar é a célebre frase da poetisa Cecília Meireles, que escreveu:

Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!

O direito fundamental à liberdade aparece no caput do art. 5o da Constituição Federal, sendo reforçado em especificidades em outros sete incisos do dispositivo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

LXVIII – conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;

Já a LGPD tem como um de seus fundamentos a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião.

Quando o art. 1o da lei dispõe que o principal objetivo da LGPD é proteger o direito fundamental de liberdade, isso significa que o tratamento de dados pessoais e toda a regulamentação envolvida deve considerar a liberdade da pessoa como um princípio de grande relevância.

O direito à privacidade

A Constituição Federal não menciona nenhuma vez sequer o vocábulo “privacidade”, porém o direito à privacidade é entendido como um direito fundamental a partir da interpretação sistemática de diversos dispositivos constitucionais.

No julgamento da ADI 6387/2020, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) interpretou que privacidade e proteção de dados já estavam cobertos pela Constituição Federal mesmo antes da Emenda Constitucional 115/2022, sobretudo por conta dos seguintes incisos do já citado art. 5o:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Não existe uma definição precisa do que seria o direito à privacidade. O tema é explorado há décadas e tem como grande marco a publicação do artigo The Right to Privacy (Warren e Brandeis, 1890).

Daniel Solove, no artigo “I’ve Got Nothing to Hide” and Other Misunderstandings of Privacy, cita vários autores para contextualizar a dificuldade de definir o que é privacidade.

No artigo, lemos que, de acordo com Artur Miller, a privacidade é “exasperadamente vaga e evanescente”. Hyman Gross diz que “O conceito de privacidade está infectado com perniciosas ambiguidades.” Colin Bennett observa da mesma forma: “As tentativas de definir o conceito de privacidade geralmente não teve qualquer sucesso.” “Talvez a coisa mais surpreendente sobre o direito de privacidade”, observa Judith Jarvis Thomson, “é que ninguém parece ter qualquer ideia muito clara do que seja.”

Uma excelente explicação teórica e histórica sobre o direito à privacidade pode ser encontrada no livro Da privacidade à proteção de dados pessoais, de Danilo Doneda, para quem é praticamente impossível definir o termo privacidade de forma objetiva.

Outros autores, como Helen Nissenbaum e o próprio Daniel J. Solove, preferem definir privacidade como um conceito camaleônico, que muda de acordo com o contexto.

Para fins práticos de aplicação da LGPD, o direito à privacidade pode ser entendido como o direito de se retrair da vida pública ou de nela participar de acordo com a vontade do titular dos dados, que os utiliza de forma controlada de acordo com as suas necessidades pessoais.

O livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural

Ainda dentro do principal objetivo da LGPD está o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe, em seu art. 22, que todo ser humano tem direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, nos seguintes termos:

Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Embora a Constituição Federal não faça menção expressa ao livre desenvolvimento da personalidade, entende-se, como faz a LGPD, que este é um direito fundamental garantido no Brasil, por força do § 2º do art. 5º que dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

O que é o livre desenvolvimento da personalidade citado no principal objetivo da LGPD

O direito ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural reconhece que cada indivíduo possui uma identidade única, composta por características, valores, crenças e escolhas que moldam sua personalidade e direcionam suas ações.

No contexto da LGPD, esse direito garante que as pessoas tenham o poder de controlar seus próprios dados para determinar aspectos essenciais de suas vidas, como a forma como se expressam, se comportam, se relacionam e tomam decisões. 

Isso inclui a liberdade de pensar, de se manifestar, de escolher sua profissão, de se associar com outras pessoas e de viver de acordo com suas convicções morais, religiosas e culturais.

Em resumo, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade visa garantir que cada indivíduo possa ser quem é, sem interferências arbitrárias ou opressivas, promovendo assim a plena realização de sua identidade e potencialidades.

Conclusão: o principal objetivo da LGPD é proteger pessoas

Neste artigo, vimos que – a despeito do nome de Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – o principal objetivo da LGPD não é proteger dados, mas sim proteger pessoas.

Mais especificamente, para usar os termos do art. 1o da lei, proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Liberdade para controlar os próprios dados a fim de fazer tudo aquilo que não seja vedado pelo ordenamento jurídico.

Privacidade para manejar seu fluxo de informações, escolhendo retrair-se da vida pública ou dela participar mais ativamente, de acordo com a própria vontade.

Livre desenvolvimento da personalidade para utilizar os próprios dados para determinar aspectos essenciais de suas vidas, como a forma como se expressam, se comportam, se relacionam e tomam decisões.

Ao operador do direito, na interpretação da LGPD, cabe lembrar do caráter humanista da lei e reforçar que alfim não são os dados que precisam de proteção, mas sim as pessoas.

Referências

BIONI, Bruno. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª ed. São Paulo: Editora Forense, 2019.

DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 25 abr. 2024.

WARREN, Samuel D. BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review. Vol. IV. December 15, 1890. No. 5.

Foto por Mike Bird

Escrito por
Walmar Andrade
Walmar Andrade