Publicado em 2024, Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial é o mais recente trabalho de Yuval Noah Harari, historiador conhecido por sua habilidade de sintetizar grandes narrativas históricas com linguagem acessível.
A obra retoma a abordagem panorâmica que tornou o autor uma espécie de popstar da divulgação científica e histórica, mas agora com um foco mais incisivo: o papel das redes de informação na construção e transformação das sociedades humanas, desde as cavernas até os algoritmos de inteligência artificial.
Harari defende que a humanidade não se destacou por ser biologicamente mais forte, mas sim por sua capacidade única de cooperar em larga escala por meio de redes informacionais complexas.
No entanto, essas redes não funcionam apenas com base em fatos, mas sobretudo com base em ficções, mitos e narrativas compartilhadas. E é justamente essa ambiguidade, entre a verdade e a ordem, entre o conhecimento e o controle, que constitui o cerne do livro.
Nesta resenha, exploraremos em profundidade os principais argumentos da obra, destacando como “Nexus” pode contribuir para uma reflexão crítica sobre o Direito, a tecnologia e o futuro da democracia.
Vale lembrar, no entanto, que Harari, embora influente e amplamente lido, tem sido alvo de críticas por parte da academia, que aponta a falta de rigor metodológico em sua obra. Além disso, seu tom pessimista (quase apocalíptico) em relação à inteligência artificial deve ser lido com cautela e espírito crítico.
Vamos analisar em detalhes neste texto:
Comecemos analisando o conceito central de “Nexus”.
1. O problema de rede: uma hipótese central em Nexus
Logo no início de Nexus, Harari antecipa o argumento que norteará todo o livro: “Nosso problema é um problema de rede”.
Para ele, a humanidade obtém poder ao construir redes de cooperação, mas essas redes são propensas a distorções que levam ao mau uso desse poder.
O principal argumento deste livro é que a humanidade obtém enorme poder construindo grandes redes de cooperação, mas essas redes são construídas de uma forma que predispõe os humanos a usarem o poder de modo pouco sábio. Nosso problema, então, é um problema de rede.
A história fornece exemplos eloquentes disso: o nazismo, o stalinismo, os genocídios modernos e outras atrocidades que não teriam sido possíveis sem redes altamente eficazes sustentadas por ficções coletivas.
Ao descrever o que chama de “noção ingênua de informação”, Harari critica a ideia corrente de que o simples acúmulo de dados nos leva automaticamente a decisões mais sábias.
Essa ideologia, segundo ele, tem sido a base do otimismo tecnológico das últimas décadas, e é, em grande parte, responsável por uma confiança excessiva nas redes digitais.
2. As três realidades: objetiva, subjetiva e intersubjetiva
Um dos conceitos mais importantes de Nexus é a distinção entre três tipos de realidade:
- a objetiva, como montanhas e estrelas;
- a subjetiva, como dor e prazer; e
- a intersubjetiva, composta por elementos que só existem se muitas pessoas acreditarem neles simultaneamente, como leis, moedas, empresas, religiões e nações.
Essa realidade intersubjetiva é central para o Direito. Harari afirma que essas entidades são sustentadas exclusivamente pelas narrativas que circulam nas redes informacionais.
“Se as pessoas pararem de falar sobre elas, elas somem”, escreve ele.
Ou seja, o Direito, assim como outras construções sociais, depende menos de sua base racional e mais da persistência da crença coletiva na validade de suas normas.
3. Estórias como infraestrutura de poder
A partir disso, Harari dedica um capítulo inteiro à função das estórias, ampliando a ideia que já havia trazido em Sapiens.
São as estórias que permitem a criação de ordens sociais amplas e duráveis, desde religiões até corporações transnacionais.
Estórias, contudo, também criam distorções, como lembranças falsas, mitologias fundacionais e identidades artificiais. Tais distorções moldam nossas percepções políticas e jurídicas.
O autor menciona, por exemplo, a forma como estados modernos se constituem a partir de estórias nacionais, com versões idealizadas do passado.
Isso se aplica também ao Direito Constitucional. As constituições, ainda que contenham cláusulas de emenda, como no caso dos EUA, são muitas vezes tratadas como textos sagrados.
Harari, entretanto, lembra que “os Dez Mandamentos não forneciam nenhum mecanismo de correção”, ao contrário das constituições modernas, o que indica uma evolução nas redes informacionais jurídicas.
4. Documentos e burocracia: o poder do papel
No capítulo dedicado à documentação, Harari analisa como os documentos transformaram redes orais em sistemas administrativos complexos.
Aqui, ele introduz o conceito de “tigre de papel”: documentos aparentemente frágeis, mas que sustentam estruturas de enorme poder, como certidões, escrituras, leis e sentenças.
A burocracia surge como uma tentativa de organizar o mundo em gavetas — o que traz ordem, mas sacrifica nuances da realidade.
“Você precisa se adaptar ao formulário, e não o formulário a você”, escreve ele.
Essa crítica é particularmente relevante para o Direito, onde a tendência a encaixar casos complexos em categorias pré-definidas pode levar a injustiças.
5. Erros sistemáticos e a ilusão da infalibilidade
No capítulo “Erros: A fantasia da infalibidade”, Harari discute como a informação também pode produzir tragédias.
Ele cita a caça às bruxas na Europa como um exemplo clássico de como uma rede de informação tóxica pode gerar consequências reais.
Não havia bruxas, claro, mas o fato de as pessoas acreditarem nelas era suficiente para sustentar uma estrutura jurídica de perseguição.
Essa reflexão nos leva a um ponto crucial: o excesso de confiança nos sistemas de informação pode gerar desastres.
A verdade, lembra Harari, “muitas vezes, é incômoda e dolorosa”; a ficção, por outro lado, é maleável.
Aqui, a crítica se estende às redes sociais e ao uso de big data no sistema de justiça, que podem reproduzir preconceitos históricos sob o verniz de neutralidade tecnológica.
6. Democracia, totalitarismo e inteligência artificial
O capítulo “Decisões: Uma breve história da democracia e do totalitarismo” compara redes democráticas e ditatoriais.
“Nexus” afirma que ditaduras são redes altamente centralizadas, com frágil capacidade de autocorreção.
Democracias, em contraste, distribuem o processamento de informação e mantêm mecanismos robustos de revisão, como o voto, a imprensa livre e o sistema judiciário.
Porém, com o advento da Inteligência Artificial, até isso está em risco.
O autor propõe uma hipótese inquietante: a maior divisão do século XXI talvez não seja entre democracias e ditaduras, mas entre humanos e agentes não humanos.
Se algoritmos tomam decisões por nós, desde sugestões de consumo até sentenças judiciais, o que resta da autonomia política?
Harari alerta que conversas genuínas, vistas como pilares da democracia, estão sendo substituídas por interações com bots.
A Inteligência Artificial pode, inclusive, produzir mitologias, legislações e religiões.
“Podemos estar falando do fim da história humana”, escreve. Não da história em si, mas do período em que humanos detinham o monopólio da criação cultural.
7. A rede inorgânica em Nexus: computadores como novos membros
A Parte II de Nexus propõe que os computadores não são mais apenas ferramentas, e sim membros ativos da rede de informação alimentada por Inteligência Artificial.
Diferentemente da imprensa ou da televisão, a IA toma decisões autônomas, aprende com seus erros e molda a realidade segundo seus próprios objetivos.
Harari chama atenção para o fato de que esses sistemas, apesar de não terem consciência, são altamente eficazes em atingir metas, como maximizar o tempo de engajamento em uma plataforma.
O problema é que isso pode levar à promoção de discursos de ódio, desinformação e polarização.
8. Implicações jurídicas e tributárias da nova economia de dados, segundo Nexus
Um trecho particularmente interessante de Nexus é a discussão sobre tributação na era digital.
Harari cita a proposta de redefinir o conceito de “nexo” para incluir a presença digital.
Se empresas extraem dados de cidadãos de determinado país, faz sentido que paguem impostos ali, assim como petrolíferas pagam pelos recursos naturais extraídos.
Uma proposta para resolver os dilemas fiscais criados pela rede de computadores consiste em redefinir nexo. Nas palavras do economista Marko Köthenbürger, “a definição de nexo baseada numa presença física deveria ser ajustada para incluir a noção de presença digital num país”. (…) Assim como a Shell e a BP pagam impostos aos países dos quais extraem petróleo, os gigantes da tecnologia deveriam pagar impostos aos países de onde extraem dados.
Além disso, Nexus denuncia o poder desproporcional das big techs, que gastam milhões em lobby e escapam de regulações sob o pretexto de neutralidade tecnológica.
Isso coloca em xeque princípios como a soberania, a autodeterminação informacional e o próprio conceito de responsabilidade jurídica.
9. Limites da abordagem de Nexus
Apesar de todos os méritos, “Nexus” não escapa de críticas. A principal delas é a simplificação excessiva de temas complexos, apresentada em um tom narrativo próximo da ficção especulativa.
Harari prefere metáforas grandiosas e provocações filosóficas a análises empíricas sistemáticas. Isso o distancia da historiografia tradicional e o aproxima do gênero ensaístico popular.
Foi esse estilo que o tornou um popstar com Sapiens, então é natural que ele o mantenha, a despeito das críticas que acadêmicos (sobretudo historiadores) teçam sobre ele.
Outro ponto criticável é o catastrofismo.
Nexus traz uma visão da Inteligência Artificial como ameaça quase inevitável ao controle humano, sem considerar as formas de regulação democrática que estão em curso, como o AI Act da União Europeia, por exemplo.
Conclusão
“Nexus” é uma leitura instigante e acessível, que nos convida a pensar a história das sociedades humanas sob o prisma da informação.
Ao longo do texto, Harari nos mostra que as redes não são neutras, sobretudo na era da Inteligência Artificial.
Ao contrário, elas produzem tanto sabedoria quanto loucura, tanto ciência quanto superstição, mas sempre com um viés determinado pelas big techs e seus opacos algoritmos.
Isso já era verdade desde o advento das redes sociais. No mundo da inteligência artificial, essa ambivalência se intensifica.
Para estudantes e profissionais do Direito, a obra oferece uma lente crítica para refletir sobre o papel da informação, das narrativas e dos algoritmos na construção e aplicação do ordenamento jurídico.
Apesar de suas limitações metodológicas e do tom por vezes alarmista, Harari tem o mérito de trazer para o centro do debate questões urgentes e inadiáveis.
Sua influência global não deve ser desprezada, e sua advertência é clara: precisamos estar preparados para os piores cenários, especialmente se quisermos preservar valores democráticos e garantir justiça em um mundo cada vez mais moldado por redes invisíveis.