Brittany Kaiser ganhou fama internacional entre 2016 e 2019, especialmente com a estreia do documentário Privacidade Hackeada (The Great Hack), em que ela e outros denunciavam como a empresa Cambridge Analytica utilizou dados pessoais de milhões de indivíduos para influenciar eleições ao redor do mundo.
No fim do mesmo ano, Brittany Kaiser resolveu contar a história exclusivamente do seu ponto de vista com o lançamento do livro Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque (Targeted: My Inside Story of Cambridge Analytica and How Trump, Brexit and Facebook Broke Democracy, no original).
Em pouco mais de 400 páginas, a autora conta toda a sua história pessoal. Desde quando conheceu Alexander Nix, CEO da Cambridge Analytica, até o momento em que decidiu delatar a empresa em que trabalhou durante anos.
No livro, em uma tentativa de expiar os próprios pecados, Brittany Kaiser faz questão de reforçar suas origens como ativista de direitos humanos e entusiasta do Partido Democrata nos Estados Unidos. A autora lembra que trabalhou na primeira campanha presidencial de Barack Obama e que sonhava em atuar defendendo questões humanitárias.
Os motivos de Brittany Kaiser
Como, então, uma pessoa assim acabou se envolvendo com a manipulação de eleições em diversos países, colocando em risco a própria democracia?
Brittany Kaiser explica algumas das razões.
Uma dessas razões é o dinheiro. A autora não estava conseguindo bons trabalhos até começar a trabalhar no SCL Group, empresa britânica mãe da Cambridge Analytica. Na empresa, ela via a possibilidade de ser bem remunerada e acreditava que iria receber ações em uma eventual valorização do negócio.
Outra das razões é o poder. Ou, ao menos, a sensação de estar próxima a pessoas poderosas. O próprio Alexander Nix é retratado como alguém da alta sociedade de Londres cuja companhia era apreciada, sendo que em algumas passagens do livro a autora passa a impressão de possivelmente haver algum sentimento entre os dois.
Em outras passagens, Nix é narrado como alguém que manipulou a autora a fazer ações que na verdade ela não queria fazer. Há trechos em que aparece um certo vitimismo difícil de ser objetivamente aceito, mas que reflete o estado emocional de quem estava vivendo a história.
A terceira e talvez mais importante razão é a família. Brittany Kaiser conta que seus pais sofreram grande abalo financeiro com a crise econômica de 2008. Sua mãe teve que voltar a trabalhar e seu pai aparentemente havia entrado em depressão.
Ajudando a pagar as contas de casa no Texas, a autora mais tarde descobre que seu pai na verdade estava com dois tumores no cérebro. Submetido a uma cirurgia, nunca mais recuperou a vida que tinha antes.
A Cambridge Analytica e o SCL Group vistos por dentro
Desde que a imprensa denunciou a forma como a Cambridge Analytica usou dados pessoais de milhões de eleitores, a empresa é vista como uma companhia má intencionada de manipulação para fins escusos.
Ocorre que, para os funcionários que estavam construindo a companhia, e que muitas vezes recebiam apenas informações fragmentadas, a história parecia ser diferente.
Brittany Kaiser escreve que os funcionários viam o SCL Group e a Cambridge Analytica não como uma agência de publicidade, mas sim como uma empresa de comunicações psicologicamente astuta e com precisão científica. Ou, como Alexander Nix a definia, uma agência de mudança de comportamento.
Para isso, a empresa utilizava uma técnica chamada microtargeting comportamental:
Com o microtargeting comportamental, um termo registrado pela Cambridge, eles podiam focar em indivíduos que compartilhavam traços de personalidade e preocupações comuns, e enviar para eles uma mensagem atrás da outra, ajustando e aprimorando seus conteúdos até que conseguíssemos atingir exatamente os resultados que desejávamos.
Brittany Kaiser, em Manipulados (2019)
O livro relata como a Cambridge Analytica ganhou expertise em eleições utilizando o microtargetting comportamental em países africanos e caribenhos, até conseguir contas de maior repercussão como o Brexist e especialmente a campanha presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016.
O livro revela ainda o papel de figuras que atuavam mais nos bastidores da empresa, como Steve Bannon, diretor executivo da campanha presidencial de Donald Trump, e Robert Mercer, bilionário que ajudou a financiar a campanha.
O papel do Facebook na manipulação de eleições
Segundo Brittany Kaiser, o microdirecionamento de mensagens realizado pela Cambridge Analytica só é possível tecnicamente por conta do Facebook.
Faz parte do modelo de negócios do Facebook coletar dados pessoais dos usuários (com o consentimento deles) e usar esses dados para vender espaços publicitários a empresas que queiram anunciar para grupos específicos de pessoas.
O problema no caso da Cambridge Analytica é que a empresa extrapolou o uso ordinário desses dados. De acordo com a autora, essa extrapolação contou no mínimo com a conivência do Facebook.
Neste ponto sempre cabe ressaltar que o livro Manipulados traz o ponto de vista da autora. As alegações sobre o real papel do Facebook no escândalo precisam ser analisadas na Justiça, com todo o direito de defesa.
Para Brittany Kaiser, no entanto, o Facebook poderia ter sido no mínimo mais cuidadoso com os dados de seus usuários.
Em primeiro lugar, a Cambridge Analytica conseguiu obter dados de pessoas que não haviam dado consentimento para tanto. Utilizando joguinhos e testes, um usuário não apenas dava acesso aos seus dados, como “permitia” que fossem obtidos dados de todos os seus amigos na rede.
Além disso, o Facebook disponibilizou equipe própria para trabalhar presencialmente junto à Cambridge Analytica durante a campanha de Donald Trump. Esse apoio presencial era meramente operacional e também foi oferecido aos oponentes de Trump, mas ainda assim pode revelar certa conivência da empresa com tudo o que estava sendo realizado, na opinião da autora.
Quando Brittany Kaiser decidiu delatar a Cambridge Analytica
Depois de uma longa narrativa da autora sobre seu caminho na empresa, o livro começa a ficar mais interessante em seu terço final.
Brittany Kaiser revela que estava cansada da rotina de viagens para vender os serviços da empresa e especialmente do modo como tais serviços eram vendidos. Ela começa a demonstrar incômodo no modo pelo qual Alexander Nix agora a tratava e também como o CEO lidava com países considerados “menores”, especialmente aqueles sem leis de proteção de dados pessoais.
A autora revela que em certo ponto já não reconhecia a si mesma. Tinha certa vergonha do próprio trabalho e via que se afastava cada vez mais de seus ideais políticos.
Ao mesmo tempo, ela começou a perceber que nunca receberia participação em ações ou teria grandes ganhos financeiros com a Cambridge Analytica.
A situação coincidiu com o início de algumas denúncias na imprensa, inclusiva aquelas que apontavam uma influência russa na eleição americana, algo que a autora afirma nunca ter tomado conhecimento.
Depois das acusações, o ex-conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos Michael Flynn se declarou culpado de ter mentido ao FBI sobre sua relação com o embaixador russo nos Estados Unidos, Sergey Kislyak.
Um dos momentos de ruptura que a levaram a se tornar delatora foi quando ela encontrou na estante de Alexander Nix um livro do mesmo Michael Flynn com uma dedicatória escrita à mão: “Juntos nós fizemos os Estados Unidos voltarem a ser grandes!”.
Como assim “nós”? O que Flynn queria dizer com aquilo? Ele e Alexander ou a Cambridge Analytica haviam trabalhado juntos para além do que eu achava? Até onde sabia, ele prestava consultoria ao SCL, quando Alexander comemorou sua nomeação (obviamente um caminho direto para contratos governamentais e militares) e lamentou sua demissão. A demissão muito recente de Flynn e aquela dedicatória fizeram os cabelos da minha nuca se arrepiarem.
Brittany Kaiser, em Manipulados (2019)
Na mesma época, no final de 2017, Kaiser relata que “o Facebook começava a admitir que sua plataforma fora usada para espalhar fake news e provocar controvérsias. Após uma auditoria interna, a empresa revelou que cerca de 3 mil anúncios contendo ataques políticos estavam conectados a 470 contas falsas vinculadas à Rússia”.
O principal momento de ruptura, no entanto, foi quando a autora viu seu nome na transcrição de uma audiência parlamentar no Reino Unido que investigava a participação da Cambridge Analytica durante o Brexit.
De Diretora a Delatora e de Delatora a Ativista
A parte final de Manipulados é a mais interessante do livro. Nela, Brittany Kaiser revela como trabalhou em parceria com jornalistas para detalhar a atuação da Cambridge Analytica, por que resolveu fugir para a Tailândia e como resolveu depor contra a empresa onde trabalhava em investigações no Reino Unido e nos Estados Unidos.
A autora também conta como a parceria com jornalistas acabou levando ao contato com Karim Amer e Jehane Noujaim, diretores do documentário Privacidade Hackeada. O documentário já estava sendo produzido quando Brittany Kaiser tornou-se delatora, mas os diretores ainda não haviam encontrado uma personagem para ser o fio condutor do documentário.
As cenas que abrem Privacidade Hackeada, mostrando Brittany Kaiser em uma piscina infinita na Tailândia e de lá voando para depor no Reino Unido, são descritas no livro.
Ao final, a autora conta que tudo o que viveu a levou a se transformar em uma ativista pela proteção de dados pessoais. Manipulados, inclusive, traz uma série de recomendações em suas últimas páginas mostrando como as pessoas podem agir para proteger seus dados e para pressionar os governantes a dar mais importância ao tema.
Incomoda o fato de que ela ajudou, como líder, a construir uma empresa que participou do roubo de dados de 87 milhões de pessoas para influenciar resultados das eleições. E que só mudou de lado quando viu que os malfeitos da empresa tornavam-se públicos.
Cabe ao leitor julgar a narrativa de que a própria Brittany Kaiser foi vítima de manipulação e acreditar na história de sua redenção.